quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

A PÉROLA DO ROCK


Pra menininha que cresceu ouvindo o som do violão do avô tocando com ternura o leve balanço e a belezura das letras da MPB seria fácil gostar de música latina, de jazz, de flamenco, de fado... Pra adolescente que veio da menininha que ouvia a tia escutar Madonna, música romântica e ouvia também o pai escutar os CD's de clássico que comprava com o jornal de domingo era fácil gostar de pop, de balada e até de música clássica.

Mas e o rock, a música do século 20, garota? Ah, ela até que ia pro rock nacional dos shows de turma. Legião, Titãs, Paralamas, Rita Lee... Ouvia hits dos Beatles, Queen, U2, Cold Play...  Mas não se deixava seduzir não, principalmente se o som era o rock mais pesado dos meninos do colégio. Era tudo muito alto, muito gritado, muito agressivo. Uma outra tribo. Rebeldia demais pra ela.

Veio então um namorado que adorava rock. Ele até curtia música clássica, por causa dos filmes que via com o pai, e pulava axé nos carnavais fora de época de solteiro, mas era rock o que ele mais ouvia. Com os irmãos, com os amigos, no som do carro, era rock o que ele vivia. E foram as baladas do rock do Pearl Jam, sua banda favorita, que compuseram a maior parte do CD de músicas que ele deu como primeiro presente pra ela. Não faltaram, claro, a passional Black, o ninar de Around the band, Light years e a doída Nothingman. No CD de quando estavam longe, Thumbing my way e Come back.

Foi assim, com as baladas e a paixão, que os ouvidos e o coração da moça se abriram pro rock, que encontrou terreno fértil na leve dose de rebeldia que ela adotou por tempero. Numa boa, com ele ou sem ele, no carro ou em casa, ela já se deixava embalar pelo Pearl Jam de Crazy Mary e Yellow ledbetter, pelo bonito canto de amizade de Off he goes, pelo solo fantástico da pobre Daughter, pela violência de Jeremy, pela questão de Alive. E breve, mais que breve, semi-breve, ela cedeu aos encantos do rock mais alternativo e não menos provocativo de Sometimes, Who you are, In my tree, Present tense, I am mine, Of the girl. Às quais depois se somaram as sublimes Long road, Man of the hour e Just breathe, pra não falar da preciosa trilha de Natureza Selvagem.

Com a paciência de um velho sábio, o garoto soube esperar. Já depois de casados, nas muitas horas de estrada que passaram a cantar juntos, foi que ele lhe aplicou as mais pauleiras. E ela simplesmente não teve como não se render ao grito libertador de Given to fly, à voz compassionada de Even flow, ao submundo de Rats, ao desprendimento de Corduroy, ao protesto visceral de Do the evolution.

Faltava ainda uma última coisa pra completar sua iniciação: um show. E ele aconteceu no início do mês passado no Rio de Janeiro. Na companhia do marido e dos amigos, numa arena sob lua cheia, ela se entregou por completo à voz forte e sincera, à guitarra autêntica e à bateria pulsante da pérola do rock. Naquela muvuca íntima dos fãs, ela agora era um deles. Cantava gritando, pulava alto, batia com as mãos no ar, fechava os olhos, rodava a cabeça e se derretia toda em rock. Era muito melhor do que podia imaginar!

No fim do show, ainda anestesiada do rock na veia, ela enfim conseguiu perceber o sentido daquilo tudo. Como tinha conseguido viver tanto tempo sem rock? Como o mundo conseguiu viver tanto tempo sem rock? Como rebelar, revoltar, ir contra, denunciar ou combater de verdade sem o grito forte, o toque veemente, o barulho angustiante e o apelo emocionado do rock, a expressão mais perfeita do nosso lado B de ser? Naquele momento ela soube que, pela mão do seu garoto e do som talentoso e humano de Eddie Vedder e seus companheiros, o rock'n'roll havia entrado de vez na trilha sonora da sua vida, pra nunca mais sair.

E que viesse o resto do rock'n'world! Rolling Stones, Jim Morrison, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Led Zeppelin, Pink Floyd, Nirvana, Metallica, Guns, Red Hot e companhia... Ela já estava pronta. Não por acaso, embalando numa harmonia perfeita os desejos dela, a pérola do rock havia fechado o show do seu batismo com o convite inflamante de "Keep on rockin' in the free world"!
[Poly Jeha]



segunda-feira, 21 de novembro de 2011

MAL ESTAR


Minha pele de cordeiro esconde um lobo
Que é o senhor de seu território,
Dominado com fezes, urina, garras
E tranqüilidade.

Por isso corro e bebo e fumo
E choro à noite e me perco,
Sem rumo.
Ignoro o território da civilidade.

[Marina Procópio]

sábado, 12 de novembro de 2011

DOENTES




A morte do cinegrafista que acompanhava a entrada do BOPE em uma favela carioca não deve ter passado ilesa a várias consciências brasileiras. Tristeza. E convite à reflexão.

Vivemos em um país onde o homicídio indiscriminado é cotidianamente praticado pelo Estado. Lembro-me de uma cena, vista há algum tempo atrás pela TV, em que traficantes fugiam a pé e a polícia, de helicóptero, atirava em todos.

Chocou-me: a cena. A forma com que se narrava o fato era de empolgação (não é à toa que não assisto mais à televisão): imprensa que não pensa e não ajuda a pensar sequer cumpre sua função técnica. Que dirá sua responsabilidade ética e social. Afinal, todos – indivíduo ou organização – somos responsáveis pela realidade que nos permeia: necessidade mera de sobrevivência da espécie.

Chocou-me: a reação de vários de nós, brasileiros. Infinitamente mais que a cena por si. Pessoas sentiram-se felizes e protegidas pela ação da heróica polícia. Não se importaram com a forma e o conteúdo da narrativa a que assistiram. Sequer pensaram que aquilo era um crime, acontecendo ao vivo, a alguns quilômetros de suas casas, respaldado pela imprensa, pela polícia e pelo Estado.

Remanescente indiferença... Acordada (por quanto tempo?) pela morte de um repórter, que não é bandido de morro. A permissividade e a natureza desses juízos são de assustar.

Pensemos: um Estado de Direito que consagra, para assim poder se definir, o justo julgamento – que implica indispensável defesa do acusado e não admite a pena de morte civil – não pode apresentar como solução para os crimes cometidos em seu território o massacre humano público e indiscriminado, por pior que seja o suposto bandido: até ser investigado, acusado e condenado, ele não passa de um suspeito. E mesmo condenado, não pode ser morto por seus crimes.

Não confio em indivíduos que falam, mas não fazem: o que nos define são nossas ações, não nosso discurso esvaziado e inconsistente, justamente pela falta ou execução de ações a ele contrárias.

Transportemos a constatação para esferas coletivas: enquanto sociedade organizada que somos estamos ignorando a forma legal que escolhemos para viver e consagrando, através de nossas ações ou omissões, outra bastante diferente.
De duas possibilidades uma: ou discutimos a permissão de extermínio pelo Estado e a tornamos legal ou acontecimentos como os mencionados aqui precisam ser combatidos pelo Estado e (sobretudo) por toda a Sociedade que o sustenta.

A morte do repórter foi triste. E um acidente que provavelmente incitará discursos (e ações, quem sabe) no sentido de mais armar o Estado (e os criminosos, por óbvia conseqüência), permitindo, assim, a morte de mais cidadãos brasileiros. Quer gostemos ou não, nossos bandidos são frutos da sociedade que construímos tanto quanto suas vítimas. Por ambos – partes do mesmo todo – precisamos nos responsabilizar.

E não será estranho possuirmos uma polícia militar, com formação de exército, em nossas ruas? Façamos uma comparação – apenas para facilitar a visualização de funções – entre exército e polícia federal, pensando em suas formações técnicas: o exército é treinado para matar o inimigo. A polícia, para investigar e servir a seus cidadãos, protegendo-os e entregando supostos criminosos ao sistema judiciário.

Agora, subamos o nível econômico: imaginemos a polícia militar invadindo, trocando tiros e matando traficantes e moradores de um condomínio de alto luxo. Mais: a polícia militar invadindo o Congresso Nacional atirando em criminosos de branco colarinho.
A imaginação torna mais visível nossa vulnerabilidade: existe processo legal neste país?

Se história não servir para aprender, melhor soterrar de vez o passado e voltar a fazer fogo com palitinho e pedra.

Acho que estamos doentes da cabeça. E cegos, de olho e de alma. [Juliana]

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

SÓ PARA CHORAR

Indicado por mim na seção Navegue, o blog Só para Chorar, foi criado para que um amigo, uma mente fervilhante de idéias, postasse  ali, as pérolas que ele, inesperadamente, cria!
José Alberto ou Zequinha ou Zeca ou apenas Zé: Deleuziano, viajante, ansioso, aberto, super ativo e criativo, iniciou sua participação em nossos encontros como o marido da amiga blogueira que aparecia de vez em quando em nossas reuniões, dando opiniões, polemizando (sempre) e tornando memoráveis nossas noites regadas a vinho e cerveja gelada. Hoje é parte do grupo. Sua ausência é sempre notada. Sua presença garantia de ótimas risadas!
Como era de se esperar, esse fervedouro todo jamais se acalmaria, sentaria em frente a um computador e alimentaria constantemente seu blog. Isso acontece, mas muito de vez em quando, e sempre após reclamarmos e pedirmos para que ele nos brinde com seus haikais mordazes, humorados, espirituosos e cortantes.
Na condição de fã, hoje apresento a vocês alguns dos textos que eu mais gosto. Aproveito a oportunidade e deixo aqui um pedido: Zeca, my sweet loser, você poderia chorar um pouquinho mais?

THE TUDORS
Nasci para ser Tudor
mas acabei sendo Nader
 
FRANGA CONTEMPORÂNEA
Pobre Nietzsche,
Tanta luta contra o amolecimento moderno!
Nada de super-homens.
Só frangas.
E de granja.
 
MPO
Havia uma terra onde todo mundo escrevia muito bem.
Itabira.
Sou belorizontino.
Escrevo mal.
 
HORA DE MORRER
O que fazer?
Existe algum livro de auto-ajuda?
Acho que rezaria.
Alguns corajosos ateus, não.

Deus, Você está na rede?
 
BOX 9
UTI.
Alguém morre.
Falência múltipla de órgãos.
Estado terminal.
Na hora da morte, não há poesia.
 
SÓCRATES CONTEMPORÂNEO
Hoje, encontrei nosso Sócrates.
Mendigo, doido e só.
Nem por isso menos sábio.
Hoje, uma nova caverna se forma.
Escutemos Álvares de Azevedo: a ciência é falsa e esquiva,
ela mente e embriaga como o beijo de uma mulher.
Vadia.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

TODA MULHER QUER BEIJAR O CHICO (MENOS A MARIETA SEVERO)

    


Nos idos da década de 70, lá pelos meus 15 anos, nutri uma paixão platônica por um vizinho meu, irmão mais velho de uma amiga, já universitário, e por uma única razão: ele se parecia com o Chico Buarque. Ele, é lógico, nunca me deu a atenção que eu queria, mas meu coração batia forte quando o rapaz se dignava a conversar um pouquinho conosco, na verdade tentando fazer nossa cabeça para que trocássemos de ídolo: do John Travolta para Che Guevara.
Isso o fazia ainda mais parecido com o Chico, o que só aumentava meus suspiros não correspondidos. Naquela ocasião, devo confessar que o nosso ato mais heróico foi o de pixar o nome do Geraldo Vandré, com pedaços de tijolo, no muro do grupo escolar em frente da nossa casa; e ficar admirando nossa coragem, até que a chuva apagasse todos os rastros da tímida atitude revolucionária.
Procê ver de que é capaz o amor, mesmo o platônico (ou principalmente ele).
E, veja bem, meu amor platônico alcançava distâncias quilométricas, saía de Itabira e atingia o Rio de Janeiro, quiçá Itália ou outro lugar qualquer, para onde o Chico se auto-exilava, na época da ditadura. Foi o Chico quem moldou minhas primeiras opções políticas: e depois, por certo, embalou meus primeiros amores perdidos.
E eu havia me esquecido do Chico.
Na década de 80, quando iniciei a faculdade, não se falava do Chico. Nós gostávamos mesmo era do rock’n roll do Cazuza, Paralamas, Lobão, Renato Russo, Marina Lima, Titãs: rock urbano, geração coca-cola, pós-ditadura – a gente não queria só comida, a gente queria comida, diversão e arte. E não estava mais nem aí para caminhar e cantar e seguir a canção.
Isso até outro dia, quando, fazendo aula de Pilates, em minha constante luta contra a dor nas costas, eu escutei o Chico de novo. Estava tocando Construção.
Foi um revival de paixão. Ai. Afinal, eu não tinha esquecido o Chico. Ele voltou, com tudo, reavivado pelo canto da sereia. Ou seria do sereio?
Daí, fui logo perguntando pra minha professora, que tem apenas 29 aninhos, se ela gostava do Chico. E ela gostava. E de pergunta em pergunta, durante uma semana, a mulheres dos 20 aos 60, a resposta, com raras exceções, era sempre a mesma. Ai!!!!
É por isso que até a mãe do Lobão, que segundo ele era da Arena, amava o Chico. E aqui eu abro um parêntese para dizer pro Lobão que o Chico fazia canções subversivas sim, que embalaram toda uma geração de esquerda, mas para uma mulher, mesmo sendo a sua mãe, mesmo sendo da Arena, era impossível não amar o Chico.
E, como diz o Caetano, o Lobão tem razão. O Chico era (e é) o namoradinho do Brasil. Ao contrário do Lobão, que é o lobo mau que toda mulher quer conquistar, domesticar e transformar... no Chico.
E porque o Chico é o namoradinho do Brasil?
Não é porque ele é lindo, porque lindo ele não é. Ele é charmoso, encantador, mas lindos mesmo são Marlon Brando, Robert Redford, Paul Newman, Brad Pitt. O Chico é só bonitinho.
Seria então porque ele é um grande poeta? Acho que não. Há muitos outros, mas ninguém quer namorar com eles.
Será aquele jeito meio gago de se expressar, cercado de incertezas, que o torna pouco falante? Ou serão seus tristes olhos azuis? Deep blue eyes, como os de Carolina, canção na qual, diga-se de passagem, o Lobão não é muito chegado.
Não se pode negar que há também nele uma certa nobreza, é só nos lembrarmos do seu nome, Francisco Buarque de Hollanda, o que talvez nos remeta a um cavalheirismo que a gente já não viveu, mas do qual sente saudades atávicas.
Eu acho que o que acontece é que o Chico é uma soma feliz de tudo isso: é bonitinho, é um grande poeta (embora ele ache que não, o que o deixa ainda mais bonitinho), tem olhos azuis (ou verdes?), é tímido, meio gago, indeciso, mas definitivo quando compõe. Absolutamente certeiro. Que o diga a música Construção.
E, mais importante, é só isso o que sabemos dele. Porque nenhuma mulher conhece o Chico. Ele é uma fantasia que pertence ao imaginário feminino, é mito. O Chico real, ex da Marieta Severo, ninguém conhece, além dela. E talvez por isso mesmo ela seja uma das poucas mulheres que não quer beijar o Chico.
Mas o mito, todas nós queremos. Aquele homem bacana, poeta, charmoso, inteligente, que quer levar a moça pra casa, que perde a noção da hora, que não tinha nascido no tempo da maldade, que planeja uma caçada boa pro caçador e pra caça e que, finalmente, quer nos levar, encantado, pro tempo de delicadeza, esse é o nosso homem ideal e impossível.
Mas que podemos levar pra debaixo dos nossos lençóis em época de fantasia escassa. [Marina Procópio]

domingo, 16 de outubro de 2011

SURPRESA


Há poucos dias fui madrinha de um casamento em que o padre falou de SURPRESA. Com uma certa poesia mas sem muitas delongas, pediu aos noivos, basicamente, que se deixassem surpreender. Que não deixassem o dia-a-dia cegar-lhes para as mudanças e o inusitado do companheiro. O apelo simples, direto e cheio de sabedoria não me saiu da cabeça. E depois dizem que os padres não têm mais nada a dizer... Digerindo, eu fui esmiuçar o sentido da palavra. E tal foi a minha surpresa:

- na etimologia, surpresa vem do francês surprendre, de sur, “sobre”, mais prendre, “pegar, prender”, que vem do latim, prehendere, “agarrar, prender, pegar à força”. Enfim, pela etimologia, surpresa é o que prende, o que pega por cima.
- no dicionário, surpresa é sinônimo de admiração, espanto.
- na filosofia, Platão e Aristóteles já falavam que esta nossa marca ou condição humana de refletir sobre nós mesmos e o que está à nossa volta, o filosofar, vem justamente do espanto e da admiração, logo da surpresa.

A surpresa não é exatamente isso? Uma festa surpresa, a frase inesperada de um filho, uma ajuda gratuita, uma lua estonteante, o presente de um amigo, a reviravolta do fim de uma história, um olhar diferente para o trivial... Algo que tira do chão e arrebata, pega à força, prende por sobre a gente, puxa por cima, tira do chão e eleva? E que, por tudo isso, nos dá a sensação de estarmos mais vivos? Sim, mais vivos... Deixar-se surpreender pelo outro ser humano ou pela vida, agora entendo melhor o apelo do padre, é reestabelecer os elos. É renovar a alma. É se permitir viver. Não ser zumbi. Não se deixar morrer.

[Poly Jeha]

IDEIA

Algo mais forte que uma boa ideia? Difícil encontrar. Talvez só uma boa ação. Pois é. Ação continua com til, mas desde a reforma ortográfica de 2008 a ideia perdeu o acento. Já imaginou o universo na mente do Criador? “Idéia” mais maravilhosa impossível, não é? Mas a “idéia” perdeu a beleza: virou ideia. Já imaginou Platão sem as “idéias”? Pois agora lá está ele, solitário, pobre coitado. Seu mundo perdeu o encanto, perdeu as “idéias”. Se a morte das "idéias" mexeu com gente do naipe do Criador ou de Platão, imaginem em mim o que causou! Eu, que gosto tanto das palavras, agora fiquei órfã de uma das minhas palavras preferidas. Eu, uma reles mortal, que me escorava nas "idéias" pra subir um pouco mais do que o corpo alcança, agora caí, despenquei do agudo que me levava para o alto. A “idéia” se foi. Pra não mais voltar. Na verdade, foi mandada embora, despedida de séculos de trabalho árduo, sem nenhum reconhecimento pelos maravilhosos préstimos, pela iluminação prestada. Gente mais impiedosa esta.

[Poly Jeha]

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

PODER E JUSTIÇA?

Themis a deusa da justiça
Themis a de vendas nos olhos
Themis a justiça cega
 
Poder que corrompe:
"Bandidos de togas"?
Poder desmedido:
Desvios de conduta?
Controle impedido:
Corporativismo?
Poder que cega:
Nepotismo?
Poder que destempera:
Impunidade?

Meritíssimos os deuses da justiça
Meritíssimos os de vendas nos olhos
Meritíssimos temidos e supremos
Meritíssimos a justiça é mesmo cega?

domingo, 2 de outubro de 2011

CONTOS DE FADAS

Era uma vez...
Três porquinhos irmãos...


Um livro de bordas onduladas onde a folha do meio, em que o lobo cozinhava o carneirinho, foi arrancada por uma mãe sensível, cuja filha chorava sempre que chegava naquela página...
Uma menina que adorava ouvir estórias. Mas ruminava:
Como era possível?
Pais abandonarem as próprias filhas com tão terríveis madrastas?
Príncipes nunca fazerem nada e serem sempre heróis nos finais?
E a desproporcionalidade em se entregar uma filha para ser presa em uma torre ou dormir eternamente por que... seus pais roubaram nabos da bruxa vizinha para não morrerem de fome ou esqueceram de convidar uma única fada para uma festa boba?
Qual pai seria tão influenciável que a sugestão da esposa em abandonar os filhos do seu primeiro casamento na floresta, com a justificativa de que não tinham o que comer, seria aceita?
Qual mãe mandaria a filha sozinha levar doces para a avó, sabendo que havia um lobo solto na floresta?
O velho, o menino e o burro? Coitados dos três! Haveria solução para aquela encruzilhada?
E a moura que, não bastasse ser torta, ainda foi castigada? Aliás, o que viria a ser uma moura?
Que justificativas todas tênues eram aquelas para conseqüências tão graves? E quanta condescendência com tamanhas barbaridades! Ninguém fazia nada?
Cismando, a menina cresceu.
E soube que a certeza absoluta que sentia, ao ouvir ou ler aquelas estórias, de que seu pai e sua mãe jamais a entregariam para uma bruxa sem lutar ou a abandonariam na floresta para morrer de fome forjou a sua grande experiência em amor incondicional.
E foi a maior razão para que tenha sido tão feliz.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

O PAÍS DA MALANDRAGEM


É uma vez um tal Dom. João 2, velho esperto, põe seu bando pra rodar. E acha logo terra nova, boa pra grilar. Mas a onda se espalha. E a patota vizinha vai de quebra. Bota logo seu Colombo pra navegar. Dom descobre a trama. Mas não quer arranca rabo. Propõe parceria e racha a área com os espanos. Só que ele quer mais um pouquinho. Resolve então dar um jeitinho. Propina o papa. E estica pra esquerda sua metade direita do mapa. Nisso aí surrupia o melhor produto. Com expedição de fachada, domina o fruto. Padre, colono e escrevente. Berro, papel e caneta. Na moral, agora é legal. Tudo no nome de Portugal.

Pr’ocupar o ponto, Dom manda a gangue. Sangue do sangue. Bons de bico e bons de briga. Crocodilar os donos do lugar. Lero de padre, cacete ou corrente. O negócio é dominar. Açúcar, ouro ou diamante. Tirar o que dá. De tanto dar no trampo, os índios dão pra afrouxar. E a onda vira os pretos, que vêm com os traficas no cabresto, sem poder negar. A boca vai bem, mas de longe Dom manda o recado. Exige o preço e sobe o bicho. E os colonos começam a sonegar. Os pretos também pedem pagamento, que vem a pau e chicote. É aí que eles aprendem que ganhar é depenar. E o cano vira regra, nesse tumulto de lugar.

Apertado pelo bando, o Dom daqui pressiona o de lá, que resolve liberar. A tramóia vira país, pronto pra estourar. Mas a carne é pouca e urubu é muito. Todo mundo querendo tirar. Coisa pública vira negócio e negócio sério exceção. Passa tempo e vem o nó. E Isabel tenta aliviar. Os pretos agradecem, mal sabendo da armação. “Dona Fulô, seu lugar inda é cozinha. Mas pra dormir, subir ladeira e bater lajão. Ô nego, também tá sem opção. É pegar ou largar. Construção, samba ou confusão”. Cá embaixo ou lá no morro, vai crescendo a ladroagem. E bacana romantiza, dizendo que é malandragem.

Como canta o brother Gerson, a parada é a vantagem. Pro Nabuco, da Pedreira, é o bagulho e o trabuco. Em Brasília, o Hiderlindo vai de voto e parceria. Seu Zé Pedro, lá da Ilha, é mais valia e nota fria. E o Joãozinho, muito esperto, logo aprende a lição. Frita a tia, janta a aula e vai chapar lá no Morrão. Só que a grana um dia acaba. E o lance é dar de Dom. Pro sinal desce o Joãozinho, o calibre é três oitão. Seu Zé Pedro é quem samba, e vai correndo pro polícia. Mas o polícia é da boca, do Nabuco e da missão. O que sobra é o colega da santa repartição. Mas, com grana e trampo certo, negócio dele é morcegação. Seu Zé Pedro lembra então da última eleição. Já era, cidadão. O seu voto é do Hiderlindo. O ramo dele é corrupção. E assim continua a sacanagem. Cada um por si e o diabo por todos, no país da malandragem.




[Poly Jeha]




sábado, 3 de setembro de 2011

ESNOBES



Pretendem-se sinônimos da elegância. Ouso discordar.

Afinal, há algo além da roupa cara, sua jóia complementar e o bom perfume. Que, aliás, para ser bom precisa ser importado. Afinal, fragrâncias nacionais jamais atingem o glamour estrangeiro...
Mais que o gosto, vale a inacessibilidade.

Regras e preferências à mesa são bons exemplos. O popular (acessível), exceto se “customizado” (e mesmo assim, a depender da tendência do momento), não é “elegante” jamais.

Mas o melhor está nas palavras: negro, pobre, subdesenvolvido, prostituta transformados, pela “etiqueta”, em afro-descendente, menos favorecido, “em desenvolvimento” e “acompanhante eventual”.
Tenham dó!
Assusta o fato de que os conteúdos e as suas implicações concretas não mudam. Mas (e apenas) o leiaute sim.

Inclusive, locução e ofício do “politicamente correto” em si já são suficientemente duvidosos para concluir que o conceito para mais nada serve além de encobrir preconceitos e tentar escondê-los até dos seus próprios perpetuadores, assim, dissimulados de “elegantes”.

Acontece que elegância e ética não são concepções dissonantes, mas complementares. Ser elegante é não jogar lixo na rua. É não parar em fila dupla e respeitar as regras de trânsito. É ser educado com todos aqueles que ocupam escalas hierárquicas superiores e inferiores (sobretudo) do seu ambiente de trabalho. É parar o seu caríssimo carro para uma mãe, com o bebê no colo, atravessar a rua, na faixa de pedestre, cuja preferência é sua.

Aos elegantes demais para seguir regras de convivência – que nada mais são do que tratar também aos “deselegantes” com respeito e educação: este princípio simples supera a elegância daqueles que tanto admiram a limpeza das praças européias, mas não catam o cocô que o seu cachorro faz na calçada da frente da sua própria casa.

Aliás, sobre elegância, apenas o fundamental: tratar o outro, seja quem ele for, como gostaria de ser tratado, diz, sobre si, elegantemente, muito mais que qualquer acesso a roupas, jóias, perfumes, carros, comidas e palavras.
[Juliana]

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

VELHAS AMIGAS DE SEMPRE

19 de agosto de 2011, uma sexta-feira normal. Nada de feriados, nada de férias. Aeroporto de Confins (BHZ), 7 da noite e 10 mulheres diferentes de malas prontas. Umas deixavam pra trás seus maridos, outras seus noivos, outras seus escritórios, outras suas clínicas... Mulheres infelizes, dando uma reviravolta na vida? Executivas voltando exaustas pra casa? Um time de futebol feminino? Não. A alegria e a risaiada contagiantes não deixavam dúvidas. Éramos um bando de amigas, eufóricas por viajarmos todas juntas novamente, após uma longa pausa de 8 anos.

Desta vez o destino era a Cidade Maravilhosa. O motivo da viagem? Despedida de solteiro da Duda, uma das amigas. Em menos de uma semana da ideia, todas as passagens já estavam compradas. Aos companheiros restou recomendar sobre os perigos do Rio e, quando não apoiar de coração a ideia, ao menos desejar uma boa viagem. Se o segurança do Santos Dumont sentiu medo ou vergonha alheia, não sabemos nem saberemos. Mas foi o passante que acabou tirando orgulhoso a foto, ao saber que aquele momento entraria pra posteridade: toda a Mulherada abraçada com a imagem do Pão de Açúcar ao fundo. A chegada já mostrava a que íamos.

Nossa primeira noite foi na Lapa, bairro boêmio frequentado por pessoas variadíssimas, gostos variadíssimos, num à vontade bem carioca. Ocasião mais que propícia pra estrear algo que eu vinha guardando a sete chaves: uma bela peruca black-power loira, que, acompanhada de um lenço de oncinha que eu lhe taquei em volta e de um vestidinho preto de algodão, ficou até parecendo meio extravagância, meio verdade. Muitos risos, fotos engraçadas e um presente valoroso. A peruca me deu pra sempre um personagem antológico, um alterego daqueles, que veio pra ficar: a Kátia.

O sábado foi, ou pelo menos era pra ser, de praia. Não sabemos se por força da nossa mineirice, de azar mesmo ou de praga dos companheiros, o tempo, em bom carioquês, “virou”. O azul do céu e do mar deu lugar a nuvens cinzentas, carregadíssimas, que vieram rapidinho parar em cima de nossas cabeças. Pegas de surpresa pelos chuviscos, o Rio foi de 40° pra 16° num piscar de olhos, e nossos biquininhos bem brasileiros deram lugar a verdadeiras burcas, que improvisamos com nossas cangas para conseguirmos sair das areias de Ipanema.

O tempo horroroso insistiu. E junto com o último capítulo da novela das 8 formou um coquetel explosivo de qualquer noite bombante. Eu, que a uns bons anos deixei de ser noveleira, cuidei de profetizar que “novelas são um atraso de vida”. Mas como prevaleceu a voz do povo, nem sempre a voz de Deus, o último capítulo de Insensato Coração veio literalmente atrasar nossa vida. Ao invés de chegarmos na “Praia”, a boate da vez, às 10 da noite, acabamos chegando à meia noite. Resultado: não conseguimos entrar (o lugar já estava lotado), nossa carruagem se transformou em abóbora, e o vendedor de chicletes, Diogo, um baixinho meio jeca e de óculos, virou nosso príncipe encantado por causa de seu, quem diria, guarda-chuva!

Para aqueles que não assistiram novela, a noite foi boa. Para o Diogo, também. Pra quem já ia pra casa por causa da chuva, nada mal ver-se de repente cercado por 10 mineirinhas lindas, que acabaram comprando quase todos os seus chicletes. A nossa noite? Ah, terminou em pizza, como não poderia deixar de ser! Só que de camarão, no Leblon, regada a vinho, muitos risos e, depois, no apartamento, a muito tricô, bem à moda feminina, até as 4 da manhã. Sinceramente, achei que a mudança acabou sendo pra melhor, prova de que há mesmo males que vêm pra bem.

No domingo, apesar da insistência dos 16°, conseguimos reverter a situação já no café-da-manhã. Nosso dia começou ao meio-dia, no Astor, com Bellinis, Guanabaras, muito espumante rosé, pratos deliciosos e, mais uma vez, alegria pra dar e vender. Da mesa ao lado, três senhores por volta dos 60 perguntaram nossa idade, ao que Marina respondeu com muito orgulho: “todas por volta dos 30”. Ao saírem, eles se dirigiram até nós com muita elegância: “Parabéns. Não daríamos pra vocês mais do que 16”. Parte dos 16, é claro, veio da gentileza dos senhores. A outra parte, queremos acreditar, veio da nossa jovialidade mesmo, a do físico e, talvez ainda mais, do espírito.

A noite de domingo veio pra fechar a viagem com chave de diamante. Na Zozô, com feijoada e um batuque bem carioca, vindo direto do Morro da Mangueira, a Mulherada caiu no samba. Em pouco tempo, todos ficaram sabendo a que fomos, e uma música foi especialmente dedicada à despedida. A Mulherada dançou de roda, se abraçou, pulou, bateu palma, fez trenzinho e os passinhos mais ridículos que podia, numa animação que contagiou o lugar. Os olhares eram de admiração: “essas aí sabem ser felizes!”.

Dentro de três horas, já estávamos na fila do check-in, em plena manhã de segunda-feira, mortas de cansaço. Mas era um cansaço diferente. Algumas horinhas de sono e já estaríamos prontas pra matar os 10 leões da semana, que agora podiam vir em 20, 30, quantos fossem. Os ânimos foram renovados, estavam cheios dos bons momentos do fim de semana, dos efeitos da alegria, do riso, da festa e, mais que tudo, da amizade. Uma amizade de anos, de muitos anos, simplesmente a metade dos anos das nossas vidas. Finalmente, havíamos conseguido viajar juntas de novo. Dormimos juntas, acordamos juntas, rimos juntas, conversamos muito e celebramos a vida, como fizemos sempre. Eu e minhas velhas amigas, minhas velhas amigas de sempre...


[meio Kátia, meio Poly Jeha]

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

AETERNUM VALE, CANIS

Em teus olhos rutila, atrevida
Minha inocência perdida.
Tu és tudo que deixei partir.
Resgataste minha alma descartada
E fizeste dela tua morada?

Corres,
E recortas o céu azul,
Na esperança do urubu.
Mas agora tu tens que ir...
Devolverás minha alma antes de sair?

Recolho-me, e tudo se encolhe.
Não há palavra que me conforte,
Não há diálogo com a morte.

[Marina Procópio]

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

ESTILOS

Nas últimas semanas de julho, Belo Horizonte foi palco de dois eventos, cada qual a sua maneira, muito bem sucedidos.
O primeiro deles foi o Sertanejo Pop Festival que reuniu quarenta mil pessoas na capital de Minas Gerais. Apresentaram-se em sua primeira edição (e, sinto aqui, o prenúncio de uma segunda) dez atrações em dois dias de shows: Maria Cecília & Rodolfo, João Bosco & Vinícius, Guilherme & Santiago, Hugo & Gabriel, João Neto & Frederico, Gusttavo Lima, Humberto & Ronaldo, Zé Henrique & Gabriel, Michel Teló e Luan Santana (estes dois últimos, aparentemente, não se apresentam em dupla, já que o “&” não se encontra entre seus nomes).
Quarenta mil pessoas! Não conheço nenhum dos cantores e nem o seu trabalho, mas com tamanho sucesso de público por certo devem contar com vozes bonitas e afinadas, músicas de boas letras e arranjos elaborados além de serem acompanhados por músicos de grande talento.
O segundo evento foi formado pela combinação dos charmosos e bem produzidos Aqui Jazz, Savassi Festival e I Love Jazz. Digo charmosos e bem produzidos porque, apesar de não ser nenhuma especialista no assunto, o estilo me agrada bastante e isso me levou a acompanhar algumas das apresentações que tinham como proposta divulgar música de qualidade em espaços públicos, de preferência ao ar livre, tendo como pano de fundo nossa Belo Horizonte - que infelizmente hoje não conta com um horizonte tão belo assim!

Ocupar as ruas com pessoas e música! Que idéia maravilhosa!
A escolha dos locais onde aconteceram as apresentações - Praça da Liberdade, Savassi, Parque Municipal, Museu de Artes e Ofícios, Praça do Papa e Museu de Arte da Pampulha – foi fundamental para a criação de um evento agradável e envolvente.
Impossível não se deixar levar pela liberdade musical, pela criatividade dos artistas e pela sintonia da platéia. Que bom sentir que todas aquelas pessoas compartilhavam o gosto pela boa música e que, pelo menos naqueles momentos únicos, transformavam a cidade em um lugar mais agradável, doce e humano!
Mas uma coisa me intriga. Quarenta mil pessoas! Maria Cecília & Rodolfo, João Bosco & Vinícius, Guilherme & Santiago, Hugo & Gabriel, João Neto & Frederico, Gusttavo Lima, Humberto & Ronaldo, Zé Henrique & Gabriel, Michel Teló e Luan Santana. O que será que aconteceu?

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

OS INTRUSOS


O tempo é um fantasma
Que nos deixa habitar a sua casa
E pouco a pouco, com calma,
Se apossa de nossa alma.

Enredados desde sempre em suas peias,
Mesmo antes de termos nascido
Corre seu sangue gelado em nossas veias.

Atraiçoa-nos na juventude,
Sob a carapuça do invisível
E incorpora-se, vencida a ilusão de plenitude,
Revelando-nos, no espelho, sua face invencível.


[Marina Procópio]



sexta-feira, 29 de julho de 2011

O SACRILÉGIO

Bartolomé Colombo, irmão e lugar-tenente de Cristóvão, assiste ao incêndio de carne humana.
Seis homens estréiam o queimadouro do Haiti. A fumaça faz tossir. Os seis estão ardendo por castigo e vingança: afundaram na terra as imagens de Cristo e da Virgem que o frei Ramón Pane tinha deixado para sua proteção e consolo. Frei Ramón tinha ensinado a orar de joelhos, a dizer Ave-Maria e Paternoster e a invocar o nome de Jesus ante a tentação, as feridas e a morte.
Ninguém perguntou aos seis por que enterraram as imagens. Eles esperavam que os novos deuses fecundassem os plantios de milho, mandioca, batatas e feijão.
O fogo junta calor ao calor úmido, pegajoso, anunciador de chuva forte. [1]

Como todo ser, possuo convicções. Algumas mais flexíveis que outras. Outras menos importantes. E algumas poucas, essenciais. Das quais não aceito abrir mão.
Afinal, é nela, essência de indecifrável e múltipla origem (que quase ao infinito chega) que me reconheço. Como pessoa. Como humana. Como alma.

E por honestamente crer na legitimidade da minha própria essência, torna-se inabalável a minha convicção de que todos nós possuímos o espaço insondável do que, para cada um, mora no imutável. Espaços não necessariamente similares. Mas necessariamente legítimos.

E ao observar tantos processos históricos cruéis (que quase ao infinito chegam), parte da minha essência se desfaz. Machucada. Não importa se o tempo ou o espaço está próximo ou muito distante da minha própria existência. Existe sangue de alma. E lágrima de dor.

No dia em que apenas o caminhar existir, há de nascer compreensão. [Juliana]




[1] (Trecho e título tirados do livro Memória do Fogo, Volume 1 – Os Nascimentos, de Eduardo Galeano, pág. 76).

quinta-feira, 21 de julho de 2011

A ARTISTA

"R$7.000,00, minha querida. Esta noivinha tem mais ou menos uns sententa centímetros, é toda em cerâmica e vem diretamente do Vale do Jequitinhonha", me disse a vendedora de uma das charmosas lojinhas de arte que ficam no Quadrado de Trancoso, Bahia, onde passei com minha família a última virada de ano. Tive que me segurar para não cair de costas!

Eu e Bê já tínhamos pensado em levar conosco, junto com as memórias, as amizades, as histórias e as fotografias dessas nossas andanças, uma pequena peça do artesanato de cada lugar, o que incluía, obviamente, o nosso querido Jequitinhonha. Mas bem que a Lívia me disse! Todas aquelas namoradeiras e noivinhas de cerâmica que eu havia visto no Sobradão de Minas Novas custavam pelo menos 3 vezes mais no Mãos de Minas de BH e de 7 a 10 vezes mais nas galerias de arte de São Paulo ou do resto do país. Uma outra dica preciosa da Lívia: uma das melhores artistas do Vale, muito conhecida no estado e bastante procurada por galerias do país e do exterior por causa da beleza de suas peças (recentemente, uma galeria portuguesa havia lhe encomendado uma cena completa de casamento em cerâmica, com direito a tudo: noiva, noivo, padre, padrinhos, damas, pajens e até convidados!), a Dona Zezinha, morava a apenas 30 minutos de carro da nossa casa.

Foi assim que, chegando da viagem de fim de ano, decidi que nossa visita à comunidade de Campo Buriti, onde vive a artista, não podia mais esperar. Tive ainda mais certeza disso quando vi Michele Obama escolher como "a" lembrança de sua visita ao Brasil, entre dezenas de peças do artesanato nacional expostas em Brasília, uma noivinha do Jequitinhonha. Não que eu seja muito afeta aos gostos da primeira-dama do tio Sam... Mas desta vez ela acertou, e, por causa dela, as noivas certamente iriam se inflacionar. Eu, que muito antes dela já tinha escolhido as noivinhas como lembrança da nossa passagem pelo Vale, não podia correr esse risco.

Lívia não soube me dizer como chegar, mas me deu o telefone da Cláudia, assistente social de MN, que conhece tudo por ali na palma de sua mão. Com a ajuda de referências como "segue a estrada toda vida", "vire depois do bar do Pirula", "passe pelo meio da estrada de eucaliptos", acabamos chegando à comunidade rural de Campo Buriti. Diferente de qualquer visita anterior a museu ou galeria de arte, em que os artistas estão distantes, quando não partiram desta pra uma melhor, desta vez eu estava me embrenhando no meio do mato para visitar uma artista local, seu ateliê, vê-la trabalhando e escolher uma peça que ia ser feita sob encomenda, o que me animou como nunca! Fora isso, era um sábado de manhã muito azul, e a beleza da paisagem já tinha valido a visita. Matas de eucaliptos na estrada, casebres coloridos com pomares exuberantes na comunidade e um vale de rocinhas eximiamente cuidadas na descida de 5 minutos da comunidade até o sitiozinho de Dona Zezinha.


Paraíso das Artes, era o que dizia a placa de boas vindas. "Acho que chegamos. Deve ser aqui". Descemos do carro. Já na entrada do sitiozinho ficamos maravilhados com a arte de Dona Zezinha. Enfeitavam a cerca de arame farpado, os troncos das árvores e os espaços de grama vários rostos e bichos coloridos de cerâmica, cheios de uma vida que eu nunca tinha visto antes nesse tipo de material. Todos eles com curvas salientes de pálpebra, de bochecha, cores e tamanhos reais, como atores vivos em um cenário, e com feições, comunicando-se conosco.


Ulisses, o marido da artista, foi quem veio nos receber. Levou-nos por um caminho cuidadosamente plantado de flores e frutas e ornado com peças de cerâmica, que serpenteia três casas. A primeira, pequena e recém-construída, hospeda visitantes. A segunda, maiorzinha e mais recuada, é a do casal. A cozinha aberta para o jardim, como descobriríamos ao final, nos acolheria com biscoitos, doces e suco de frutas da estação colhidas ali mesmo. A terceira, uma casinha muito simples, que provavelmente foi a primeira do casal, eles transformaram em ateliê, com o grande forno branco ao lado, pra queimar as peças.

Foi no fim desse caminho, numa pia de ardósia entre o forno e o casebre, que encontramos a artista, moldando barro. Tímida, ela nos soltou um sorriso, e seu Ulisses nos encaminhou para dentro dos cômodos para vermos as bonecas. Pequenas, médias, grandes, todos os tipos de cabelos, feições, vestidos, bordados e cores. Elas eram muito mais lindas do que pensávamos!


Encomendei a nossa com cuidado, acertando tudo com seu Ulisses. Depois saí para conversar com Dona Zezinha e descobrir um pouco mais da história da artista. Com uma voz mansa, meio acanhada, ela foi me contando. A bola de barro cinza molhado que tinha nas mãos eram os pés de uma boneca que ela estava começando a criar. Começou a pegar e preparar o barro ainda menina. A mãe sabia fazer tigela, gamela, garrafa, galinha, moça, e ela gostava de ajudar. Depois continuou a fazer por necessidade de trabalhar. Como não tinha estudo, mexer com artesanato de barro ajudava no sustento. E com isso acabou descobrindo que tinha o dom. Agora ensina o ofício à filha mais nova. Sobre as bonecas, elas são todas de barro, desde a forma até as cores. Branco, vermelho, amarelo, laranja, rosa, lilás, marrom... Todas essas cores estão na terra da região, que ela e outras artesãs sabem bem onde buscar.


Pra dar cria a toda essa arte, Dona Zezinha trabalhou muitos e muitos anos. Trabalha muito até hoje, todos os dias, das sete às quatro. No fim de semana não trabalha, que é para ir à missa, cozinhar pra família e tirar do seu forno tabuleiros de biscoito polvilho e rosquinhas doces (deliciosos por sinal!). Também tira férias no fim do ano, pra poder descansar e conversar mais tempo com as vizinhas. Perguntei a ela se ficava imaginando que tinha bonecas espalhadas por todo o mundo, umas em quartos de crianças, outras em escritórios, em galerias, em países de neve, em países de deserto... Soltando um sorriso discreto, ela me disse com toda simplicidade que não pensava nisso não. "Penso nas bonecas até elas ficarem prontas. No mais, é isso aqui", apontando para o sitiozinho. Perguntei, por fim, de onde ela tirava a sua inspiração. "Faço como se fosse eu... Queria ter um rosto bonito assim... Os vestidos, os filhos, os bichos, faço tudo como se fosse pra mim...".

Já dentro do carro, quando saíamos daquele cantinho abençoado, percebi que fui comprar a noivinha de lembrança, mas voltei com muito mais, uma lição para a vida inteira. Dona Zezinha me mostrou, com as mulheres, os bichos e as flores de barro do seu quintal, que a arte é o exercício de deixar ainda mais bonito o pedaço de mundo que Deus nos dá. E me ensinou mais. O artista deve, sim, levar a arte para a sua própria vida (pra casa, pros biscoitos, pra família, pros amigos...). Mas sem perder com isso a simplicidade, que é sábia e mantém os pés no chão, o chão que faz da inspiração criação.


 [Poly Jeha]