segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

NATAL


Uma mãe gentil e criativa. Uma avó costureira. Um pai corajoso. Uma família que, inteira, estabeleceu emocionante e amorosa tradição.


Marataízes/ES, 1973:
Um ano e quatro meses: Juliana vê, pela primeira vez, através do buraquinho de vidro da porta branca, o rosto do Papai Noel. Chora...


Barbacena/MG, 1980:
Seis anos e quatro meses: Patrícia diz que “o sapato do Papai Noel é igual ao sapato do papai!!!”.


Barbacena/MG, 1981:
Cinco anos e oito meses: Flávia junta todos os restinhos de perfumes e desodorantes da casa da vovó. Coloca em um vidrinho e amarra com fitinhas: dá de presente ao Papai Noel, para que fique bem cheirosinho!!!


Barbacena/MG 1985:
Quatro anos e três meses: Paula amarra inúmeros canudinhos e dá de presente ao Papai Noel: “é para não sujar sua barba tão branquinha !!!”.


Barbacena/MG, 1995:
Três anos: Gustavo diz, referindo-se aos reais olhos negros do Papai Noel que visitava sua família: “o olho do papai Noel é azulzinho como o seu, Cacá...”.


Belo Horizonte/MG, 2009:
Seis meses: Heitor vê, pela primeira vez, na casa da sua vovó, o Papai Noel. Chora...


Belo Horizonte/MG, 2010:
Trinta e oito anos: Juliana se recorda das suas histórias de Natal.


* Ao Papai e à Mamãe Noel de vinte e seis anos, hoje avós. E à vovó.

[Juliana]

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

MORRER DE AMOR!

Em agradecimento aos inesquecíveis professores e colegas do curso "A Arte de Contar Histórias" do Instituto Cultural Aletria, que me permitiram reentrar pela porte da frente no mundo mágico das histórias, e às palavras de incentivo do padrinho de nossa turma, nosso querido Olavo Romano, transcrevo o causo mineiro que, com "muito gosto", desfiei naquela inesquecível noite estrelada e musicada do dia 21/06/2010, da nossa "formatura":

Esse causo que eu vô contá pr'ocês agora, que acunteceu lá pras banda de Trás-os-Morros, eu pude acumpanhá de pertinho, porque se deu com o marido de Rosinha, minha mió amiga.

Faz coisa duns 80 ano, nasceu numa fazenda de gado daquelas grande da região um moleque que logo passou a ser chamado pela famia de Tavito. Tavito era daqueles menino danado de levado, artero que só veno! Aprontava com todo mundo. Como era mais esperto que os irmão e os amigo tudinho, conseguia deles tudo que queria. O pai, coitado, que mandava ele tomá conta dos bezerro pra tê o que fazê, ele enganava tamém. Ficava o dia intirim nadano com os amigo no rio ou veno as moça tomá banho e, na volta, se rolava em esterco de pasto pra chegá em casa fedeno a bicho e passá o véio pra trás.

Foi assim que Tavito cresceu. E num mudô nadinha de adulto. Cês sabem né, gente?! Pau que nasce torto nunca se endireita. Cum as muié da região, também fazia tudo enquanto era tipo de arte. Namorava umas aqui, outras ali. As moça toda duidinha quereno casá. E Tavito nada. Assim ele foi. Foi até conhecer Rosinha. Isso mesmo. Aquela minha amiga Rosinha que eu falei pr'ocês.

Ah... Rosinha era um primor de moça! Cabelo pretinho cumprido, olhos grandes amendoados, boca saliente, vestido florido e fita no cabelo. Foi Tavito vê Rosinha, que ele caiu de joelho e pediu a moça em casamento. E os dois casaro, gente. Foi um casamento bonito mesmo, daqueles de fazenda, e logo depois tivero três fio. Tavito era um marido muito amoroso com Rosinha. Levava alfazema, flores do campo, presenteava com vestido bonito, chamava de "meu anjo, anjo da minha vida"... E assim eles fôro viveno.

Mas cês sabem né, gente!? Pau que nasce torto nunca se endireita. Passado uns ano, Tavito começô a arrumá uma namorada aqui e outra ali. Primero, teve coisa com a muié do Seu Tonico Fazendêro. E os amigo da venda alertaro: "Ômi, esse Seu Tonico é brabo. Um dia desses te mete uma faca nas venta e tu vai morrê assim, de morte matada". Tavito dava uma boa risada e logo emendava: "Morro não, ômi. Morrê, só se fô de amô". Depois foi a vez da muié do delegado. "Ômi, esse delegado é brabo demais! Dia desses te mete um tiro no peito e ocê num dá nem notícia. Vai acabá morreno assim, de morte matada". E Tavito gargalhava... "Morro não, ômi. Morrê, só se fô de amô". Por fim, passou a namorá a muié do padre. Cês acreditam, gente, que nem a muié do padre ele perduô? E os amigo: "Ômi, agora cê passô dos limite. Inté a muié do padre?! Cê vai morrê de praga e, ainda por cima, segue diretim pro inferno!". "Ha, ha, ha... Morro não, ômi. Morrê, só se fô de amô".

Assim ele siguiu. Tavito e Rosinha foro envelhecendo, criaro os fio tudo, depois viero os netinho... Até que um dia Rosinha caiu de cama. Uns diziam que era problema de coração, outros de respiração. Não se decidiam. Veio farmacêutico, veio padre, veio dotô e de tudo enquanto é gente da cidade, e nada. Rosinha foi ficando magrinha, tadinha, miudinha, até virá um fiapo. E Tavito lá. O tempo intirim. Num saía do lado de Rosinha. Recebia os dotô, as famias, as otra visita, tudo sozinho. Fazia questão. Nem durmi esse ômi durmia. Mas num adiantô. Em poco tempo Rosinha se foi, daquela morte morrida que é triste, que ninguém sabe por quê. Só veno.

Gente, e num é que Tavito logo depois caiu doente! As namorada mandava bilhete, e ele nem confiança. Os amigo da venda levava da mió cachaça, levava carta, levava prosa, e ele nada. As fia levava as quitanda quintinha e cherosa, que ele mais gostava, e ele nada. Num deu 1 meis pra esse ômi fechá os ói e dispidi da vida. Se foi. E foi mesmo.

Até hoje, pra quem chegue por aquelas banda perguntando de Tavito, o "menino danado de levado", vão dizê pr'ocês: "Morreu. Morreu, sim. E num foi nem de morte matada, nem de morte morrida. Morreu de amô".

[Poly Jeha]

PIMPÃO E O PODER DAS HISTÓRIAS

Compartilho com você um caro aprendizado, que lhe trago em forma de depoimento e, depois, apelo.

Entrar novamente no mundo do "era uma vez..." foi, pra mim, de certo modo, voltar a viver. Foi unir, como convida Machado em Dom Casmurro, esta e outras pontas à primeira ponta da minha vida: as deliciosas histórias entoadas por mamãe e minha vó Maria e, depois, as minhas aventuras de criança ao lado do meu ursinho Pimpão. Do aconchego das histórias da mãe e da vó, creio que você se recorda bem. Mas se você não se lembra do Ursinho Pimpão, canção que eu ainda bem pequenina ouvia incansáveis vezes da vitrola de meu pai ou do violão de meu avô e que, hoje eu sei, entoou minha infância e meu coração, aí vai:

"Vem meu ursinho querido
Meu companheirinho
Ursinho Pimpão

Vamos sonhar aventuras
Voar nas alturas
Da imaginação

Como na história em quadrinhos
Eu sou a Sininho
Você Peter Pan

Vamos fazer nossa festa
Brincar na floresta
Ursinho Tarzã

Enquanto o sono não vem
Eu sou Chapeuzinho
Você meu galã

Dança também (Pimpão)
Pelo salão (Pimpão)
É tão bonita, nossa canção

Manhã já vem (Pimpão)
Dorme Pimpão (Pimpão)
Urso folgado, não tem lição

Vem meu mocinho querido
Ator preferido
Da minha estação

Vou te sonhar colorido
Pegando bandido
Na televisão

Vamos deixar o cansaço
Dormir num abraço
Meu velho amigão

Não fique triste zangado
Se eu viro de lado
E te jogo no chão

Ah! Meu ursinho palhaço
Seu circo é um pedaço
Do meu coração

Dança também (Pimpão)
Pelo salão (Pimpão)
É tão bonita nossa canção

Manhã já vem (Pimpão)
Dorme Pimpão (Pimpão)
Urso folgado, não tem lição"

Pois é. Esse mundo que fica alhures, entre o real e o imaginário, entre o físico e o sonho e que era alimento pra minha mente e pra minha alma, infelizmente, há muito eu o havia deixado. Em grande parte, auxiliada pelo saber quase exclusivamente científico das escolas e faculdades, somados à insegurança e à necessidade de afirmação de uma adolescente no mundo.

Mas foi há mais ou menos uns três anos, quando começou a bater o cansaço de todos aqueles saberes pretenciosos e não tão verdadeiros assim, que esse mundo de histórias fez-se de novo música pros meus ouvidos. Ouvi. Deixei ouvir. E então me deixei levar. Sorte a minha, que conquistei de volta a minha própria história e, de quebra, o veludo das vozes da mãe e da avó, o brincar mais gostoso, as lições mais sábias e o meu - agora prometo - inseparável amigo, Ursinho Pimpão.

Fica aqui o meu pedido encarecido a mães, pais e avós: não deixem de contar histórias a seus filhos e netos. É por meio das vozes, olhares e gestos vindos do lar que as crianças se tornam íntimas desse universo do "era uma vez...", que depois os transporta com facilidade para os livros, os filmes, as outras formas de arte e de vida.

Não deixem que o saber científico ou mesmo filosófico ou religioso suplantem em nossas crianças a imaginação e a extrema liberdade que dela provém. Os saberes não se excluem, se complementam. E como bradava Emília, personagem encantadora de Lobato que personificava a imaginação: "Eu sou a independência ou morte!".

Também não percam, pais e avós, a oportunidade de ensinar com as histórias e, assim, dar vida nova aos tesouros da nossa cultura. Acreditem, contar histórias é talvez a forma mais eficiente de repassar o saber, já que, por meio delas, não só crianças mas também adultos aprendem brincando.

Por fim, não privem seus filhos e netos da expressão dos seus afetos por meio da palavra oral ou escrita, cujos primeiros passos estão nas histórias, porque ela é raiz do diálogo, do entendimento e da paz.

E viva o poder das histórias!!!
[Poly Jeha]

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

CANOA












Te soltei na água, canoa
Que graça que fiz
Pelo dedo dos outros
Não foi por um triz

Quero-te livre, canoa,
Vive, corre, nada e voa,
Olha pra trás e não chora
Sente a pena e se arvora

Que esse mar que eu te fiz só te sorri
Fadas e harpas, dóceis bichos ingênuos
Seres encantados, heróis inventados
Espadas sem ponta, ilusões sem conta

Vai e não volta, canoa
Se é pra morrer, morre feliz
Aqui dirão que é de papelão
Vão lacerar teu coração.

         
      De BH out/2006 pra MN out/2010
                      [Poly Jeha]

terça-feira, 23 de novembro de 2010

MARCA-PASSO

                                              (pro meu pai)


Seu coração é do tempo de longínquas guerras.
Os homens eram inocentes
e ainda usavam chapéus.


Nas ruas corriam bondes,
não havia avenidas
e o mar era só paisagem.


Suas histórias e crenças
(de tudo o que já não há)
(naquilo que já se foi)
engendraram substância indelével
nas linhas de minha vida.


Na minha mão está o seu registro.
Estamos presos ao tempo
e somos únicos um para o outro.
A lenta batida de seu peito
marca passo acelerado em meu coração.
(Marina Procópio)

terça-feira, 9 de novembro de 2010

2010


Eleições responsáveis pelo desencadear de questionamentos individuais que, até então, permaneceram inéditos em meu coração.
Sempre fui contra qualquer forma de discriminação, mas, até ser mãe, nunca havia sentido na pele quaisquer dos tipos de suas mutações.
E talvez influenciada pela sutil e profunda mudança do inconsciente coletivo da sociedade em que me encontro inserida, estivesse excessivamente orgulhosa e esperançosa com os rumos tomados pelo mundo e, sobretudo, pelo meu país. País este que, pela primeira vez em sua história, portou-se como um dos protagonistas deste processo global, assumindo importância jamais imaginada por nós, reles brasileiros.

Afinal, estamos historicamente acostumados à lógica da subserviência. Lógica esta que nos presenteou com olhos que enxergam de baixo para cima e de cima para baixo.

Triste e doentio olhar do qual nasceram (também) preconceitos – transformados, por aqueles que os compartilham, em verdades inquestionáveis.

Da conclusão surge possível resposta para minha espantada pergunta: por que, ao votar, as pessoas defendem idéias destituídas de lastro? Por que acreditam mais no que se fala e menos no que se faz? Por que resultados concretos nada dizem a elas?

E ao vivenciar um processo eleitoral esvaziado, pautado em discussões estéreis e exclusivamente centralizado na figura individual de seus candidatos, fui obrigada a refletir. Afinal, muito pouco daquilo que considero importante em um processo eleitoral estava sendo realizado. De quanta fragilidade padece nossa democracia!

As grosseiras acusações à candidata Dilma (que, em parte, tem relação com o seu gênero), o lamentável papel de parte significativa da igreja católica deste país, que, ao contrário do que prega, fomentou ódio e discórdia, aliados ao já comezinho desserviço que a imprensa nativa nos presta, obrigou-me a rever parte dos conceitos pessoais que tinha sobre nós, brasileiros. Nós que somos um povo e uma nação, mas, sobretudo – e a despeito da infelicidade desta conclusão para alguns – uma raça.

Senti-me envergonhada por ser parte do coletivo que se recusa a discutir tão fundamental questão como o aborto, que se sente tão incomodado com o fato de que parcela significativa dos seus integrantes ascendeu socialmente, que admira tanto a situação do povo da Noruega, mas não a deseja para o Brasil, que tem sede de justiça desde que não seja a social.

Afinal, o sonho da minha empregada doméstica não tem a mesma legitimidade do meu. Para que ela quer ter duas televisões em casa e de onde recebeu a permissão para sonhar que seu filho entre na universidade? Onde aprendeu a exigir direitos?

Quebrada (em tão pequena parte...) a barreira social que nos separava, fomos obrigados a expor o que nossa privilegiada situação de desigualdade blindava: não gostamos de raças misturadas, não gostamos de mulheres (sobretudo se estiverem no poder), não gostamos de empregados que nos olham de frente, não gostamos de outra religião que não seja a nossa, não gostamos de ser povo.

Enfim, não gostamos de nós.

Histórica ferida a ser ainda curada.

Precisamos, urgentemente, nos revisitar e rever: como indivíduos e como sociedade.
Contudo, o resultado das eleições, a despeito do seu processo e de seus paradoxos, mostrou que a vontade de grande parte da nossa brasileira raça é de superar verdades que, olhando com olhos que enxergam horizonte e horizontal, não são tão verdades assim. [Juliana]

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

SIM, PRECISAMOS SEGUIR MUDANDO!

Sorrindo. Foi como acordei hoje. Elegemos nossa primeira presidente mulher mas, muito mais que isso optamos pela continuidade de um governo que conseguiu resultados nunca antes alcançados.

Decidi, antes das eleições, não discutir as razões do meu voto, pois percebi que nem os argumentos mais claros, os dados mais concretos ou as conquistas mais importantes seriam levados em consideração por quem optou em dar seu voto ao candidato adversário.

“Precisamos mudar”; “É saudável a alternância de poder”; “Não é bom para o país que um partido fique por tanto tempo no poder”. Ouvi muito estes argumentos e concordo com eles. O que não entendo é porque tão grande incômodo e tamanha vontade de mudar um governo cujos indicadores econômicos e, principalmente, sociais demonstram incontestáveis avanços.

Não percebi tal empenho na tão defendida “alternância de poder” antes da eleição do nosso presidente “operário”. Interessante esse apoio às promessas do candidato “do bem” em lugar das realizações do governo do “sapo barbudo”. Descobri que políticos e partidos que já tiveram oportunidade de governar, por um período infinitamente maior, e que não conseguiram, por falta de competência, interesse ou vontade, obter resultados como os alcançados nestes últimos anos devem merecer uma nova oportunidade! Quem sabe mudaram o foco?  Quem sabe aprenderam como governar visando o bem do povo?

Há quem acredite em gnomos e coelhinho da páscoa! Não faço parte desse seleto grupo de pessoas. Outra chance? Não com meu voto!

Também não me iludo. Temos um longo caminho a percorrer, muitos problemas a resolver e muito trabalho até que nosso país alcance os índices sociais desejáveis, mas ter 31 milhões de pessoas passando para a classe média e 28 milhões saindo da pobreza absoluta é um começo e tanto!

Eu acredito em realizações e não posso esquecer como éramos subservientes, desiguais, frágeis economicamente. Compartilho com os presidentes Lula e Dilma o sonho de viver em um país mais justo. E hoje, ainda sorrindo, estou certa que vamos indo na direção certa! [J.]

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

PÉROLAS AOS POUCOS

    
 "MATEUS 7:6
Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis ante os porcos as vossas pérolas, para que não as pisem com os pés e, voltando-se, vos dilacerem.”

No ano passado, mandaram pra mim um e-mail sob o título “Pérolas do ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio”. A palavra pérolas, lógico, tinha um sentido pejorativo e era clara a intenção de depreciar a educação dos jovens no Brasil. Deixei arquivado no computador, porque na verdade tinha gostado muito, achava divertido quando lia e ficava pensando nos jovens ali, à tarde, naquele calor, tentando escrever sobre o aquecimento global.
    E, olhando com mais atenção o que os jovens tinham escrito, percebi que eles tinham produzido algumas frases que causariam inveja em muito comediante ou poeta. Era claríssima a intenção dos estudantes de escrever dentro do padrão da tão decantada norma culta, mas a semelhança fônica entre as palavras acabou conferindo significado novo para as frases, como, aliás, acontece com todo mundo. Quem já não se confundiu, por exemplo, com letras de músicas, e saiu cantando por aí a letra com um significado novo, só dele, enganado pelo próprio ouvido? Eu mesma cantava uma música do Titãs assim: “Homem de lata, capitalismo selvagem”, quando minha sobrinha me corrigiu e disse que era “Homem primata, capitalismo selvagem”. Eu morri de rir, mas para falar a verdade, a minha versão tinha sentido pra mim: Homem de lata: homem sem coração, duro.
    Outra frase que todo mundo usa quando quer falar que o filho é a cara do pai (ou da mãe): “cuspido e escarrado”. Eu me lembro da minha professora de português explicando que a origem da expressão vinha da longínqua “esculpido em mármore de Carrara”. Não sei se é por aí mesmo, já vi versões distintas, mas na verdade, nesta altura do campeonato, nem mais me interessa. A expressão cuspido e escarrado fala por si. Pra mim significa que o filho era tão parecido com o pai que só podia ter saído de dentro dele, como uma cópia cuspida e escarrada, uma coisa meio mitologia grega, como os filhos que nasceram de partes de Urano lançadas ao mar.
    Todo mundo se engana, fala fora dos padrões ditos cultos, escreve idem, mas ninguém admite, porque a língua tem poder e o idioma culto é um símbolo justificador da dominação. Mas é assim que a língua avança e se transforma, como tudo na vida. Não fosse, estaríamos ainda falando e escrevendo no mais puro latim (ou pior, talvez estivéssemos apenas soltando gritos guturais por aí).
    Essa, aliás, a crítica mais contundente que eu ouço sobre o Lula, como se ninguém, além dele nesse país, cometesse qualquer erro gramatical e como se todo o governo Lula - e a proposta de governo do seu partido, o PT, que eu acompanho desde a década de 80 - soçobrasse ante o uso incorreto de uma reles preposição ou de uma concordância inventada. Eu acho que, na verdade, muitas vezes ele está é jogando pérolas aos porcos (mas ainda bem que nem sempre, já que foi eleito presidente deste país por duas vezes consecutivas e agora, se Deus quiser, vai eleger a Dilma).
    Então, em defesa da nossa fala, das deliciosas modificações da nossa língua e da grande criatividade do povo, que quando não entende uma frase, cria outra, resolvi resgatar algumas das orações da prova do ENEM e postar no blog, porque eu acho que elas são realmente pérolas, mas pérolas que a gente vai encontrando aos poucos, porque pérola é isso, um corpo estranho que se imiscui dentro da ostra e que pela irritação que nela causa termina por se transformar numa pedra preciosa.
    Aí vão elas:
1 – A floresta tá ali paradinha no lugar dela e vem o homem e créu."
Quer explicação mais contundente?
2 - Grande excesso de desmatamento exagerado é a causa da devastação."/ "A Amazônia está sofrendo um grande, enorme e profundíssimo desmatamento devastador, intenso e imperdoável./ "O aumento da temperatura na terra está cada vez mais aumentando."
É isso aí. O problema da Amazônia é que há um grande excesso de desmatamento exagerado, profundíssimo, devastador, intenso, imperdoável e que o aumento da temperatura está aumentando cada vez mais. Não é um desmatamentozinho qualquer, não é um aumentozinho qualquer. Pra explicar o desmatamento da Amazônia e o aquecimento global, só com muito pleonasmo...
3 - "Espero que o desmatamento seja instinto." (…)
Segundo o Houaiss, instinto é impulso interior, independente da razão e de considerações de ordem moral, que faz o indivíduo agir, especialmente se a ação é anti-social. Então, eu também espero que o desmatamento seja instinto...
4 - "A floresta está cheia de animais já extintos. Tem que parar de desmatar para que os animais que estão extintos possam se reproduzirem e aumentarem seu número respirando um ar mais limpo."
Esse aí disse uma coisa assim, meio Jurassic Park. Esperançoso... E por que não?
5 - "A emoção de poluentes atmosféricos aquece a floresta."
Essa aqui eu não sei o que ele quis dizer, mas não ficou lindo? A emoção aquece a floresta.
6 - "Animais ficam sem comida e sem dormida por causa das queimadas."
Bonitinho demais, né. Absolutamente ecológico. Digno de qualquer bom escritor de estórias infantis.
7 - "Precisamos de oxigênio para nossa vida eterna."
Essa frase é pura poesia! Acho que nós precisamos mesmo de muuuuuito oxigênio para nossa vida eterna!
8 - "Os desmatadores cortam árvores naturais da natureza."
O que é uma pena, né? As árvores naturais da natureza levam um tempão pra crescer e os homens vão lá e créu.
9 - "A principal vítima do desmatamento é a vida ecológica."
Em todas as suas manifestações.
10 - "A amazônia tem valor ambiental ilastimável."
Realmente, se perdermos a Amazônia, será ilastimável. Não vai ter nem jeito de lastimar, nem com muita lástima vai dar pra se consolar.
11 - "Explorar sem atingir árvores sedentárias."
Gostaria de conhecer as árvores sedentárias da Amazônia. E, com certeza, deve haver muitas, já que elas ficam lá, paradas naquela boa vida, só dando frutos e esperando chegar os passarinhos e outros bichos para espalhar suas sementes por aí.
Árvores sedentárias é um novo adjetivo espetacular para árvores. Manoel de Barros, que sempre quis ficar em estado de árvore, talvez tenha querido dizer árvores sedentárias.
12 - "Os estrangeiros já demonstraram diversas fezes enteresse pela amazônia."
De fato, os estrangeiros são mestres em demonstrar fezes fora de seus países...
13 - "A floresta amazônica não pode ser destruída por pessoas não autorizadas."
Concordo, porque é exatamente isso que acontece.
14 - "Retirada claudestina de árvores."
Neologismo: mistura de claudicante com clandestina; ou seja, a retirada das árvores é coisa de gente claudicante, que apresenta imperfeição, falha, deficiência, além de ser clandestina.
15 - "Temos que criar leis legais contra isso."
É isso mesmo, as leis têm que ser legais, bacanas, lei sacana que termine incentivando a exploração claudestina não vale.
16 – A amazônia está sendo devastada por pessoas que não tem senso de humor."
Realmente, quem está destruindo a Amazônia não tem o menor senso de humor. Ou alguém acha que tem?
17 - "A cada hora, muitas árvores são derrubadas por mãos poluídas, sem coração."
Essa não é pura poesia?
18 - "Vamos gritar não à devastação e sim à reflorestação."
Esta ficou entusiasmada com a possibilidade da rima, que dava mais força às palavras de ordem. Valeu!
19 - "Uma vez que se paga uma punição xis, se ganha depois vários xises."
Por que não? O plural de nariz é narizes; o plural de xis, é xises.
20 - "A natureza está cobrando uma atitude mais energética dos governantes."
Está mesmo. Se os governantes não tiverem uma atitude mais energética, mais cheia de energia, a natureza vai dar o fora!
21 - "O povo amazônico está sendo usado como bote expiatório."
Na Amazônia, com tantos rios, é mais sensato que o povo esteja sendo usado como bote expiatório. No Nordeste, seria bode expiatório.
22 - "Na floresta amazônica tem muitos animais: passarinhos, leões, ursos, etc."
E tem também o boto cor-de-rosa, o saci-pererê, a curupira, a iara, o boitatá, a mãe d’água, a mula sem cabeça e qualquer animal que nossa criatividade quiser inventar.
23 - "Na cama dos deputados foram votadas muitas leis."
Sábia a criança, heim? Na pena do Millôr Fernandes, ia matar muita gente de rir.
24 - "O que vamos deixar para nossos antecedentes?"
É, do jeito que está, não vamos ter nada para deixar pros nossos descendentes. A pergunta, então, já traz em seu bojo a resposta. A única esperança é deixar pros antecedentes, porque pros descendentes não vai sobrar nada.
25 - "A fiscalização tem que ser preservativa."
Preventiva, preservativa, tudo vai para o mesmo lugar: não deixar que aconteçam surpresas desagradáveis.
26 - "Não podem explorar a Amazônia de maneira tão devassaladora."
Neologismo dos bons - devastar com avassalador: devassalador.
Pois é. Eu gostaria mesmo é que a Amazônia não fosse explorada de forma tão devassaladora e claudestina e que os políticos, porque na cama, créu!, aprovassem leis de forma mais preservativa, já que as leis criadas até agora, com raras exceções, não são legais. Senão, só vão sobrar árvores sedentárias nas fotos dos nossos antecedentes e vamos perder a oportunidade de ver animais na mata, sempre com comida e dormida: a iara, o boitatá, os ursos, a mãe d´água, animais não extintos e também extintos, da forma que nossa imaginação mandar.
Quem está destruindo a Amazônia tem mãos poluídas e ausência de coração e não tem, é claro, o menor senso de humor, deve ser porque fica sempre lambendo a caca dos estrangeiros. Vamos gritar não a devastação e sim a reflorestação, porque só assim teremos e tão almejado oxigênio para nossa vida eterna. [Marina Procópio]

terça-feira, 21 de setembro de 2010

ORA (DIREIS), OUVIR ESTRELAS


Este, o primeiro poema que ouvi. Aliás, um soneto, como pacientemente explicou-me minha letrada avó "Lechuga".

O vento eu já conhecia. Primeiro, através do delicado sopro que saía dos lábios da minha tia e em mim provocava gargalhadas (mas isto, quando eu ainda era um bebezinho). Depois, através da janela da sala da minha casa, quando meu pai me levava ali, à noite, para ver as luzes coloridas da minha cidade.

A lua (“crescente”, segundo minha mãe), conheci depois, em um domingo de cigarras, no quintal da minha casa. Estava adiantada, em um céu que ainda não era o da noite. Foi por acaso que a descobri, ao brincar de acompanhar o vôo de um pardal. Aliás, gosto muito desta brincadeira!

E ver a lua... Mais bonita que as luzes da cidade e do teto da minha casa! Tive, inclusive, que empurrar o queixo da minha mãe para o alto, insistentemente. É que, em vez de ver aquela formosura no céu, ela insistia em olhar para mim, vê se pode! Tanta alegria não podia ser só minha, podia?

Porém, foi entre o conhecer o vento e o conhecer a lua que conheci poesias e estrelas... Estas, no colo da mesma tia que me soprava amor. Aquelas, quase no mesmo instante, quando minha avó, percebendo que meu olhar maravilhava, começou a contá-las...

Compreendi, então, como é vasta a galáxia. Maior ainda é o universo, explicaram-me. Assim como me foi explicado que já fui estrela e que voltarei a ser (devo confessar que essa parte não entendi direito).

Mas, as estrelas... Nada pode ser tão bonito! Aquela gentileza do céu entrou dentro de mim, através dos meus olhos de jabuticaba (que ainda não sei o que é) e nunca mais saiu!

Mais tarde e ainda emocionado, soube que o esquecimento dos adultos em me mostrar as estrelas e as poesias, causou-lhes estranha dor (que na verdade não dói da mesma forma que o meu nariz, quando me espatifo no chão). Mas os fez chorar como eu choro!

Ah... Descobri também, dias depois, que na cidade não é tão fácil ver as estrelas, mesmo quando elas já são velhas conhecidas suas. É que as procurei, algumas vezes. Não as encontrei... Será por quê?

Pois bem. Acabo aqui esta pequena parte da minha aventura, que mamãe insiste em chamar de outro nome!

Oh! Esqueci de me apresentar: meu codinome é "Lechugo" e tenho um ano e um mês. O mesmo tempo que demorei para ver poesias e ouvir estrelas...

(Texto do Heitor, postado por Juliana, única que, por ora, sabe escrever)
*título tirado da primeira frase da parte XIII do soneto "Via Láctea", de Olavo Bilac, parte da inspiração desta real história.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

A MENINA E SUA PALETA

Esta história e seus desenhos eu criei a partir do baú de guardados da minha querida mãe, Ana Maria. Foi num fim de tarde desses, quente e amarelo, eu no aconchego de sua cama, ela arrumando o guarda-roupas, que os retalhos do "grupo escolar" alçaram vôo e cintilaram aquele quarto, como grãos de poeira em raios de sol.

Naquelas férias de janeiro de 1967, com apenas 8 aninhos, enquanto não brincava no terreiro com seus 2 irmãozinhos mais velhos, cuidava dos 4 menores ou lavava as vasilhas pra mãe, Aninha ficava colada à barra da saia de Dona Maria, lembrando-a da compra dos materiais escolares. A menina simplesmente não aguentava esperar os novos cadernos pautados, os lápis pretos, as borrachas e, como lhe havia sido prometido no ano anterior, a sua primeira caixa de lápis-de-cor. Tanto fez, que a mãe, com os mirrados "mirréis" que custosamente reunia das sobras da casa, acabou cedendo aos seus apelos.

De blusinha branca e sainha plissada vermelho-carmim, meias xadrez e sapatinhos pretos surrados, lá se foi a menina pro primeiro dia de aula. Sua pasta e a dos irmãos, que iam sempre juntos à escola, foi Aninha mesma, a que mais tinha gosto pelos estudos, que organizou. Depois dos dois quarteirões de costume, a menina viu finalmente surgir o Grupo Carmen de Melo. Aninha passou ali, feliz da vida, toda a tarde. Leu em voz alta, leu em voz baixa, montou figuras, brincou de roda. Mas uma coisa ainda faltava: usar as cores que tinha ganhado.

A menina mal pôde se conter quando a tia deu a última lição do dia: desenhar e colorir o seu lar. A tarefa não era fácil e tinha de ser cumprida da melhor forma possível, pensou a menina. Aninha teve, então, uma ideia. Fechou seus olhinhos. Cerrou-os ainda mais um pouquinho e, aos poucos, foi se despedinddo do rosto da professora, dos cantos da sala e do barulho dos coleguinhas. Passados alguns segundos, já podia ouvir distante o chamado da mãe para "entrar pra dentro do portão", no fim de suas brincadeiras de rua. Mirou o quadro. E aí despregou os olhinhos. Abriu o caderno de artes, empunhou o lápis preto e começou a fazer brotar da folha branca todos os tracinhos que podia, de cima para baixo, de um lado para o outro, retos, curvos, curtos, longos. Apagou alguns, retocou outros e, por fim, rabiscou a roseira do terreiro. O desenho estava pronto.


Admirou-o por um breve instante e logo se inclinou pro chão, remexendo a pasta em busca da tão esperada caixa de lápis-de-cor. Puxou-a com as duas mãozinhas e pousou-a com cuidado sobre a mesa. Enfiou o polegarzinho e o indicadorzinho direitos dentro do papelão e subiu os seis longos bastões de madeira, deixando toda a paleta à mostra. Como ia ficar bonita a sua pintura, pensou. Mas, logo depois que começou a colorir, a menina sentiu um aperto enorme na barriga. Não ia conseguir pintar o seu lar só com aquelas 6 cores... Não ia conseguir entregar à professora o desenho que devia...

Como que procurando refúgio, olhou em volta. Olhou mais uma vez e, inesperadamente, na fila à direita, duas carteiras pra trás, lá estava sua salvação! Uma caixa enorme, com 24 lápis-de-cor, tal como a que tinha visto chegar naquele ano à papelaria do Sr. Geraldo. Eram tantas cores! Tinha verde-água, tinha rosa e até uma outra ainda mais bonita, justamente pras rosas do seu terreiro! Só havia um problema. Um grande problema. Todas, todas aquelas cores eram simplesmente da menina mais metida da sala, a Dayse. Mas Aninha não conseguia deixar de olhar as cores. Olhou de novo e de novo, até que tomou coragem.

- Dayse, como é que chama mesmo essa cor aí, meio vermelho, meio rosa, só que mais escura?
- Hã? - fez-se de distraída a menina.
- Essa cor aí. Como chama mesmo?
- Ah... Essa cor bonita aqui? - levantou orgulhosa o bastão. - É o bonina!
- Bonina? Hum... - tomou mais coragem, inflou os pulmõezinhos e soltou: - Você pode me emprestar?
- Eu não, sua boba. Pede sua mãe pra comprar!

Enrubescida, Aninha virou-se rápido pra mesa, tentando escapar da vista alheia, e se deixou perder no desenho. Os olhinhos, fixos, marejaram. E o desenho ali, em preto e branco, impassível, exigindo suas cores. Rendendo-se, tirou o seu único azul e pintou o céu. Queria-o fim de tarde, mas ele pareceu noite. Sem o laranja, pintou o sol e as paredes de amarelo. Sem o marrom, foi o preto pro telhado, pro tronco da goiabeira e pro Volks. Pra que tudo não ficasse uma escuridão só, falseou o chão de terra do terreiro com o único verde que tinha na caixa. E, de vermelho, teve de colorir as rosas e também o balanço que o pai tinha feito pra ela.


Ao ver pronto aquele desenho, tão diferente do seu lar, o suor lhe melou a nuca nos cabelos e o tronquinho se curvou. Decepcionada, ela escondeu bruscamente o desenho embaixo da carteira e pôs-se a esperar a hora do sinal. A professora, que andava por entre as carteiras, dirigiu-se até a sua melhor aluna e murmurou:

- Já terminou a tarefa, Aninha?
- Não - respondeu cabisbaixa a menina.
- Então, por que guardou o desenho?
- Porque ele ficou feio - confessou depois de um instante.
- Feio?
- É. Eu não consegui colorir o meu lar do jeito que ele é. A Dayse não me emprestou as cores dela, e a minha mãe não pode comprar.
- Ah, o problema é esse... - ponderou a professora. - Bem, Aninha. São estas aqui as suas cores?
- São - respondeu a menina, acanhada.
- E se eu te dissesse que você não precisaria de mais para pintar o seu lar do jeitinho que ele é?
A menina fitou diferente a professora.
- Você sabia que Papai do Céu pintou o mundo todinho, inteirinho, com apenas 5 cores? Foi sim. Só com o preto, o branco, o azul, o amarelo e o vermelho.

Paralisada, a menina nada respondeu, deixando cair novamente os olhinhos. Depois acompanhou de soslaio o caminhar da professora, cruzou os bracinhos na carteira e sobre eles deitou de lado a cabecinha, perdendo os olhinhos na parede. Mergulhada em todo aquele branco, começou a imaginar o velhinho. Como ele tinha conseguido pintar tantas flores, borboletas, rios e gente com apenas 5 cores? Não era possível, pensava.

Aliviada pelo tocar do sinal, Aninha esperou um pouco os irmãos e com eles logo chegou em casa. Atravessando o portão, avistou o quadro que não havia conseguido pintar. Deu uns passinhos moles e pesados, deixou irem os irmãozinhos e, ali mesmo, de pasta jogada no chão, deixou-se ficar. Olhava em volta, via e revia as cores, mas não conseguia entender a arte do velhinho. Tudo com apenas 5 cores? Aconchegando-se perto da roseira, a menina esqueceu por um instante a tarefa. Ficou a admirar a delicadeza das folhinhas, o veludo das pétalas e aquela linda cor que o sol lateral inundava de nuances. Pra ver melhor, inclinou o pescocinho pra direita, depois pra esquerda, e foi aí que percebeu, no vermelho vivo da rosa, um pouco de roxo, um pouco de azul... O bonina!

Aninha levantou bruscamente para reparar melhor. Foi até a goiabeira e viu no tronco um pouco de preto, misturado com um pouco de vermelho e de verde. Viu nas folhas adultas um verde de vultos pretos, e nas jovens, um verde vivo, que brilhava como o branco. Assim também na horta. No balanço, nas telhas e na terra, viu o vermelho escurecer-se com o preto para virar marrom. Volks era isso e mais um pouquinho de amarelo. No balanço e nas paredes da casa, encontrou um laranja que ficava entre o amarelo e o vermelho. Voltou-se, por fim, para aquele belo céu de fim de tarde e viu, embaixo do azul, um pouco de amarelo, e de laranja, e de vermelho, e de lilás, e depois o horizonte.

Aninha foi correndo em direção à pasta, arrancou dela o caderno de artes e, deitando a barriga no chão de terra, começou a rabiscar o seu lar, até finalizá-lo novamente com a roseira do terreiro. Sacou da pasta a caixa de lápis-de-cor, que estranhamente parecia maior, e puxou dela as suas 6 cores. Aliviada por ainda ter uma cor a mais que Deus, repassou atenta todas as misturas e recomeçou a pintar o lar. Os lápis agora iam num zigue-zague leve e raspavam a folha num chu chu chu gostoso, formando uma aquarela. Caprichou a menina em cada detalhe, em cada tom, dando o melhor que podia. A última mistura que fez foi aquela bonita, o bonina, com que pintou as suas rosas. Pronto! Mal podia acreditar que havia conseguido pôr na folha branca o seu lar, luzindo com todas as cores que ele tinha.


Ali mesmo a menina deixou-se ficar, apreciando aquela belezura de pintura. Quando o dia foi se despedindo e a noite caindo, foi a vez da arte do velhinho. A menina despregou o olho do desenho e começou a reparar em tudo à sua volta. Em cada cor. Em cada sombra. E em como Ele ia mudando cada vez mais rápido as cores daquele quadro. Ficou assim... Até o grito de D. Maria, ao longe:

- Aninha, onde você está, menina? Vem tirar o uniforme e trocar a fralda do Diquinho pra mamãe!

Se já estava bem antes ou se veio depois desses desenhos, isso não faz diferença. O que importa é que naquele fim de tarde, ali, bem ali, pude ver pintado nas mais belas cores esse dom multiplicado de minha mãe, de fazer sempre muito com o pouco que tem.

                           [Poly Jeha]

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

A VIDA QUE VALE A PENA

PICASSO

Quarta-feira, 25 de agosto, manhã... Preparo-me para assistir a um ciclo de palestras, tarefa obrigatória para aqueles que ocupam certa função no local onde trabalho.
Sentada no auditório, mal consigo conter meu “entusiasmo”. Engraçado como as coisas perdem a graça quando são transformadas em obrigação. Os temas escolhidos são interessantes, percebe-se que houve uma preocupação da equipe organizadora em tornar o encontro proveitoso, mas, mesmo assim, continuo “entusiasmada”.
Primeiro palestrante. Tempo arrastando. Final da apresentação. Tramo comigo mesma: “E se eu escapar? Há muitos espectadores, ninguém dará pela minha ausência!” Francesamente, dirijo-me para a porta. “Espere, volte aqui!” Sou agarrada por uma colega de trabalho que também cumpre sua tarefa de ouvinte. “Nada de ir embora. Preciso de apoio. Ficaremos até o final!” Não tenho mesmo saída.
Segundo palestrante. Prevejo outro debate “entusiasmado”. Início da apresentação: “...Clóvis de Barros, titular da cadeira de Ética – USP...” Currículo extenso, títulos no Brasil e exterior. Penso “entusiasmada” comigo: “Que bom para ele!” E, após dez minutos de exposição, grata surpresa, estou completamente encantada por aquele homem. Frases certeiras, humor aguçado, vocabulário e cultura admiráveis. E tudo isso em um sujeito simples, cujo maior orgulho é seu título de Professor.
Platéia arrebatada, Professor Clóvis segue envolvendo e divertindo. Solidão, escolhas, satisfações, medos, realizações, angústias, enfim, situações cotidianas da vida, muitas vezes deixadas de lado, são trazidas à discussão de maneira única.
“A vida que vale a pena” vai sendo discutida e desvendada. Resumo rasteiro: cabe apenas a nós decidir como viver, assumindo riscos, sonhos, medos e esperanças. Descobrir nosso lugar de encaixe na engrenagem de um mundo cada vez mais veloz e chegar ao ponto máximo de fazer a vida valer por ela mesma. Simples assim. A vida que vale a pena é a que se vive plena, completa e satisfatoriamente. Viver a vida que vale a pena para nós mesmos e não a que valha a pena para os outros.
Quinta-feira, 26 de agosto, noite... Quatro retalhos juntos em mais um encontro. Conversa fácil, riso livre, confidências, desabafos. Contentamento puro. Insight! Minha vida valendo por ela mesma! Sorrio e faço um brinde ao Professor! [J.]

sábado, 21 de agosto de 2010

POLITICAMENTE INCORRETA

Eu quero tomar banho de chuveiro elétrico,
sem limites, ter a chuva quente no meu corpo triste,
consumir a energia das hidrelétricas,
esgotar a água do rio e dos mares,
matar de sede os animais e as plantas,
e depois de esvaída a última gota,
ter o sono tranqüilo e seco
do exaurimento. [Marina Procópio]

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

ENSINAR


 
Haroldo e Teobaldo tornaram-se amigos na maturidade. Ao bem da verdade, nem tão amigos assim... Mais por conta da amizade entre suas esposas, talvez...
Enfim, gostavam um do outro.


Mas existia algo naquele tempo. Ou, para não incorrer na ilusória percepção de memórias que teimam em idealizar o ido, onde não é mais possível saber do real, havia algo naquelas pessoas.


Que foram, por assim dizer, convivendo. Falando dos filhos e dos netos. Dividindo desassossegos e viajando juntos. Sentindo saudades comuns. Contando piadas. Planejando futuros.


Até que um deles adoeceu. No início, um desequilíbrio. Ao final, não podia andar. Sequer falava.


Aí, o outro o visitou. Todos os dias. Sem exceções. Tocava a campainha na mesma hora, voltando do trabalho, ou não. Sentava-se ao seu lado. Às vezes, contava uma novidade. Na maioria, nada dizia.
Ficava.
E se ia.


Chegou, então, o dia em que o amigo partiu. Definitivamente.
E nesse momento, sua neta cismou...
Tantas visitas.
E o humano coração do amigo, do seu amado avô. [Juliana]

terça-feira, 10 de agosto de 2010

ÓRFÃOS DE LÍNGUA


Devido à boa formação que recebi em colégios particulares de uma das capitais do país, acreditava eu que não pertencia à massa dos brasileiros que "fala errado" ou "escreve mal". Embora não me gabasse desse privilégio, por compaixão daqueles que não tiveram as mesmas oportunidades que eu, confesso que essa crença me confortava e muito. Afinal, inúmeros estudos científicos vêm há muito demonstrando que aqueles que manejam bem a linguagem têm muito mais chances de sucesso na vida do que os "iletrados".

Tudo ia relativamente bem, até que, nos finais de 2005, tendo rumado para Coimbra - Portugal, onde morei por dois anos, para realizar o meu curso de mestrado, tive uma interessante experiência linguística: escutei minha língua sendo falada e a vi sendo escrita por uma nação completamente diferente. No início, o som consonantal e sibilado me confundia e incomodava os ouvidos. Depois, a ordem das palavras, a colocação pronominal e a conjugação dos verbos é que me saltavam aos olhos, intimando para uma releitura. Em poucos dias, no entanto, já havia me acostumado a esse novo português. Era o que eu pensava.

Aprendidas as formalidades necessárias para o trato com as pessoas em geral e com os professores e funcionários da universidade, já me sentia segura para me comunicar. Tal não foi a minha surpresa, quando, já nos primeiros debates acadêmicos, percebi que sempre me faltava ao discurso palavra mais apropriada ou maior correção gramatical. Após minhas inserções, passei a me sentir, como nunca antes, um pouco envergonhada, por não ter sabido me expressar naquele português tão pomposo e correto de meus professores e colegas lusitanos. Comparando-me a eles, percebi que me faltavam, para não desfilar uma lista muito grande, extensão de vocabulário, familiaridade com as normas e os indispensáveis traquejo e naturalidade com a língua.

Para completar, comecei a ouvir ao meu redor, com uma chata insistência, que a minha língua era o "brasileiro" e, por exclusão, não o "português" que havia me acompanhado desde que nasci. "Quanta audácia!", pensava eu. "Me colonizaram e exploraram o país, me impuseram à força sua língua e, depois, quando a ouvem de meus lábios brasileiros, lhe rejeitam a paternidade, ou melhor, a maternidade". Até hoje, quando me lembro desses episódios, não sei dizer quem envidava mais esforços: se eram os portugueses, renegando aquilo que ouviam da boca dos miscigenados, ou se era eu, reinvindicando como órfã desesperada a maternidade da minha língua-mãe.

Ao fim do mestrado, retornei de vez ao Brasil e passei à fase das depurações. No que respeita à língua, após ter me reacostumado com o nosso "português" e ter relido alguns dos livros de Machado de Assis, percebi com uma clareza meridiana que, de mãe, essa nossa língua nada tem. Se, após o banimento do "tupi-guarani" pela "língua oficial" instituída por Marquês de Pombal, foi possível aos senhores do século XIX (ocupantes de cargos públicos e elite econômico-cultural do país) se comunicarem num "português" exímio, de luxo, à la Metrópole, isso não se mostrou possível para os nativos, os miscigenados ou a grande massa brasileira, que, sem saber ler e escrever, se formou através da língua popular, misturada nas palavras, nos jeitos de falar, de pensar, nas crenças e nos costumes.

Hoje fica mais fácil para mim compreender porque a língua que eu ouvia em casa, da boca de meus avós, era tão diferente da língua que me ensinavam na escola. Hoje fica mais fácil para mim compreender porque a narrativa oral de histórias, contadas ao lado do fogão, é mais prazenteira que o português rijo dos livros empurrados guelas abaixo pelas escolas. Hoje fica mais fácil para mim compreender porque era tão difícil me imiscuir, aos 14 anos, mesmo que bem alfabetizada, no "português examplar" dos textos de Machado de Assis.

A consciência da orfandade, que adquiri depurando Portugal, me cochichou que eu talvez tenha me equivocado àquela época, ao reivindicar com tanta veemência uma maternidade para a minha língua. Cochichou de novo, propondo que eu extraia da denominação "brasileiro", dada pelos portugueses à nossa língua, algo de melhor. Cochichou ainda essa minha consciência que talvez seja melhor que nós, brasileiros, assumamos a nossa orfandade de língua, catemos os cacos dos genes que ainda nos restam e, com as velhas e as novas palavras, construamos juntos, à la brasileira, no falar e na escrita, a nossa verdadeira língua-materna, ou melhor, o nosso "brasileiro".

[Poly Jeha]

sábado, 31 de julho de 2010

OLHE COM QUEM ANDA OU TOME MUITO CUIDADO COM A SUA ESCOVA DE DENTES!


Segundo alardeia um fabricante de creme dental, 12 males podem atacar a nossa boca: cáries, problemas de gengivas, placas, bactérias, tártaro, mau-hálito, manchas, fragilidade do esmalte, desmineralização dos dentes, bactérias da língua, cáries nas raízes dos dentes e PH irregular.
Nada disso teria a menor importância para aquela libriana, não fosse ter sido informada de que sua preciosa escova de dentes azul fora “compartilhada”  com uma amiga e companheira de viagens.
Não apenas uma vez, num daqueles momentos de descuido, por que todos passam na correria do dia-a-dia. Não! A “comunhão” ocorreu várias vezes ao dia e durante os DEZ dias que durou a viagem de férias feita a Pernambuco, mais precisamente Tamandaré, em um paraíso chamado Carneiros.
“E agora?”, pensou a vítima do engano, enquanto olhava incrédula e fixamente a abilolada amiga que, cara traquinas, sorriso malicioso, revelava-lhe, com gosto, o segredo, que até então, certamente queimara-lhe as entranhas. A causa daquele riso mal contido era conhecer muito bem a amiga libriana, toda certinha (além de dada a algumas manias) e saber o quão imaculada podia ser, para ela, a sua escova de dentes azul!
“Tudo bem... Já passou... Acontece... Fazer o quê...” pensava a libriana ao se refazer do choque e tentando absorver da melhor maneira possível o impacto que causara aquela confidência. “Como uma pessoa não reconhece sua própria escova de dentes? Se ela usou minha escova durante toda a viagem, onde estava a dela? Ah... Com certeza, de tão atrapalhada, nem se lembrou de levar sua própria escova de dentes!” eram os pensamentos que, por outro lado, invadiam sua mente.
E a amiga “usurpadora” deliciando-se com a situação! Agora, riso frouxo, apreciando cada minuto do mal disfarçado desconcerto que tomara conta da outra, sempre tão senhora de si!
Sinceramente resignada, já que nada mais – mesmo, podia ser feito (e também, graças aos céus, pela certeza de estar com a boca perfeitamente saudável, já que acabara de fazer sua visita anual ao dentista) caiu também a libriana na mais aberta gargalhada!
Pensando bem, aquilo não lhe devia causar espanto. Amigas há muito mais de 10 anos, bem conhecia o jeito estorvado da ‘’sem-escova”.  Sabia muito bem que se  expunha a perigos desta natureza convivendo tão de perto com aquela trapalhona. Completamente amalucada, é certo, mas muito especial e única! Enfim... Nada como um pouco de adrenalina!
À noite, já em sua cama, o sono chega e leva o último pensamento da libriana: “Que sorte! Escapar de 12 problemas bucais! Não... Os meus problemas bucais mais os problemas bucais dela. 12 problemas bucais ao quadrado! Espera um pouco! A “sem-escova” é casada! Puxa... 12 problemas bucais ao cubo! É... Muita sorte mesmo!” [J.]