terça-feira, 21 de setembro de 2010

ORA (DIREIS), OUVIR ESTRELAS


Este, o primeiro poema que ouvi. Aliás, um soneto, como pacientemente explicou-me minha letrada avó "Lechuga".

O vento eu já conhecia. Primeiro, através do delicado sopro que saía dos lábios da minha tia e em mim provocava gargalhadas (mas isto, quando eu ainda era um bebezinho). Depois, através da janela da sala da minha casa, quando meu pai me levava ali, à noite, para ver as luzes coloridas da minha cidade.

A lua (“crescente”, segundo minha mãe), conheci depois, em um domingo de cigarras, no quintal da minha casa. Estava adiantada, em um céu que ainda não era o da noite. Foi por acaso que a descobri, ao brincar de acompanhar o vôo de um pardal. Aliás, gosto muito desta brincadeira!

E ver a lua... Mais bonita que as luzes da cidade e do teto da minha casa! Tive, inclusive, que empurrar o queixo da minha mãe para o alto, insistentemente. É que, em vez de ver aquela formosura no céu, ela insistia em olhar para mim, vê se pode! Tanta alegria não podia ser só minha, podia?

Porém, foi entre o conhecer o vento e o conhecer a lua que conheci poesias e estrelas... Estas, no colo da mesma tia que me soprava amor. Aquelas, quase no mesmo instante, quando minha avó, percebendo que meu olhar maravilhava, começou a contá-las...

Compreendi, então, como é vasta a galáxia. Maior ainda é o universo, explicaram-me. Assim como me foi explicado que já fui estrela e que voltarei a ser (devo confessar que essa parte não entendi direito).

Mas, as estrelas... Nada pode ser tão bonito! Aquela gentileza do céu entrou dentro de mim, através dos meus olhos de jabuticaba (que ainda não sei o que é) e nunca mais saiu!

Mais tarde e ainda emocionado, soube que o esquecimento dos adultos em me mostrar as estrelas e as poesias, causou-lhes estranha dor (que na verdade não dói da mesma forma que o meu nariz, quando me espatifo no chão). Mas os fez chorar como eu choro!

Ah... Descobri também, dias depois, que na cidade não é tão fácil ver as estrelas, mesmo quando elas já são velhas conhecidas suas. É que as procurei, algumas vezes. Não as encontrei... Será por quê?

Pois bem. Acabo aqui esta pequena parte da minha aventura, que mamãe insiste em chamar de outro nome!

Oh! Esqueci de me apresentar: meu codinome é "Lechugo" e tenho um ano e um mês. O mesmo tempo que demorei para ver poesias e ouvir estrelas...

(Texto do Heitor, postado por Juliana, única que, por ora, sabe escrever)
*título tirado da primeira frase da parte XIII do soneto "Via Láctea", de Olavo Bilac, parte da inspiração desta real história.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

A MENINA E SUA PALETA

Esta história e seus desenhos eu criei a partir do baú de guardados da minha querida mãe, Ana Maria. Foi num fim de tarde desses, quente e amarelo, eu no aconchego de sua cama, ela arrumando o guarda-roupas, que os retalhos do "grupo escolar" alçaram vôo e cintilaram aquele quarto, como grãos de poeira em raios de sol.

Naquelas férias de janeiro de 1967, com apenas 8 aninhos, enquanto não brincava no terreiro com seus 2 irmãozinhos mais velhos, cuidava dos 4 menores ou lavava as vasilhas pra mãe, Aninha ficava colada à barra da saia de Dona Maria, lembrando-a da compra dos materiais escolares. A menina simplesmente não aguentava esperar os novos cadernos pautados, os lápis pretos, as borrachas e, como lhe havia sido prometido no ano anterior, a sua primeira caixa de lápis-de-cor. Tanto fez, que a mãe, com os mirrados "mirréis" que custosamente reunia das sobras da casa, acabou cedendo aos seus apelos.

De blusinha branca e sainha plissada vermelho-carmim, meias xadrez e sapatinhos pretos surrados, lá se foi a menina pro primeiro dia de aula. Sua pasta e a dos irmãos, que iam sempre juntos à escola, foi Aninha mesma, a que mais tinha gosto pelos estudos, que organizou. Depois dos dois quarteirões de costume, a menina viu finalmente surgir o Grupo Carmen de Melo. Aninha passou ali, feliz da vida, toda a tarde. Leu em voz alta, leu em voz baixa, montou figuras, brincou de roda. Mas uma coisa ainda faltava: usar as cores que tinha ganhado.

A menina mal pôde se conter quando a tia deu a última lição do dia: desenhar e colorir o seu lar. A tarefa não era fácil e tinha de ser cumprida da melhor forma possível, pensou a menina. Aninha teve, então, uma ideia. Fechou seus olhinhos. Cerrou-os ainda mais um pouquinho e, aos poucos, foi se despedinddo do rosto da professora, dos cantos da sala e do barulho dos coleguinhas. Passados alguns segundos, já podia ouvir distante o chamado da mãe para "entrar pra dentro do portão", no fim de suas brincadeiras de rua. Mirou o quadro. E aí despregou os olhinhos. Abriu o caderno de artes, empunhou o lápis preto e começou a fazer brotar da folha branca todos os tracinhos que podia, de cima para baixo, de um lado para o outro, retos, curvos, curtos, longos. Apagou alguns, retocou outros e, por fim, rabiscou a roseira do terreiro. O desenho estava pronto.


Admirou-o por um breve instante e logo se inclinou pro chão, remexendo a pasta em busca da tão esperada caixa de lápis-de-cor. Puxou-a com as duas mãozinhas e pousou-a com cuidado sobre a mesa. Enfiou o polegarzinho e o indicadorzinho direitos dentro do papelão e subiu os seis longos bastões de madeira, deixando toda a paleta à mostra. Como ia ficar bonita a sua pintura, pensou. Mas, logo depois que começou a colorir, a menina sentiu um aperto enorme na barriga. Não ia conseguir pintar o seu lar só com aquelas 6 cores... Não ia conseguir entregar à professora o desenho que devia...

Como que procurando refúgio, olhou em volta. Olhou mais uma vez e, inesperadamente, na fila à direita, duas carteiras pra trás, lá estava sua salvação! Uma caixa enorme, com 24 lápis-de-cor, tal como a que tinha visto chegar naquele ano à papelaria do Sr. Geraldo. Eram tantas cores! Tinha verde-água, tinha rosa e até uma outra ainda mais bonita, justamente pras rosas do seu terreiro! Só havia um problema. Um grande problema. Todas, todas aquelas cores eram simplesmente da menina mais metida da sala, a Dayse. Mas Aninha não conseguia deixar de olhar as cores. Olhou de novo e de novo, até que tomou coragem.

- Dayse, como é que chama mesmo essa cor aí, meio vermelho, meio rosa, só que mais escura?
- Hã? - fez-se de distraída a menina.
- Essa cor aí. Como chama mesmo?
- Ah... Essa cor bonita aqui? - levantou orgulhosa o bastão. - É o bonina!
- Bonina? Hum... - tomou mais coragem, inflou os pulmõezinhos e soltou: - Você pode me emprestar?
- Eu não, sua boba. Pede sua mãe pra comprar!

Enrubescida, Aninha virou-se rápido pra mesa, tentando escapar da vista alheia, e se deixou perder no desenho. Os olhinhos, fixos, marejaram. E o desenho ali, em preto e branco, impassível, exigindo suas cores. Rendendo-se, tirou o seu único azul e pintou o céu. Queria-o fim de tarde, mas ele pareceu noite. Sem o laranja, pintou o sol e as paredes de amarelo. Sem o marrom, foi o preto pro telhado, pro tronco da goiabeira e pro Volks. Pra que tudo não ficasse uma escuridão só, falseou o chão de terra do terreiro com o único verde que tinha na caixa. E, de vermelho, teve de colorir as rosas e também o balanço que o pai tinha feito pra ela.


Ao ver pronto aquele desenho, tão diferente do seu lar, o suor lhe melou a nuca nos cabelos e o tronquinho se curvou. Decepcionada, ela escondeu bruscamente o desenho embaixo da carteira e pôs-se a esperar a hora do sinal. A professora, que andava por entre as carteiras, dirigiu-se até a sua melhor aluna e murmurou:

- Já terminou a tarefa, Aninha?
- Não - respondeu cabisbaixa a menina.
- Então, por que guardou o desenho?
- Porque ele ficou feio - confessou depois de um instante.
- Feio?
- É. Eu não consegui colorir o meu lar do jeito que ele é. A Dayse não me emprestou as cores dela, e a minha mãe não pode comprar.
- Ah, o problema é esse... - ponderou a professora. - Bem, Aninha. São estas aqui as suas cores?
- São - respondeu a menina, acanhada.
- E se eu te dissesse que você não precisaria de mais para pintar o seu lar do jeitinho que ele é?
A menina fitou diferente a professora.
- Você sabia que Papai do Céu pintou o mundo todinho, inteirinho, com apenas 5 cores? Foi sim. Só com o preto, o branco, o azul, o amarelo e o vermelho.

Paralisada, a menina nada respondeu, deixando cair novamente os olhinhos. Depois acompanhou de soslaio o caminhar da professora, cruzou os bracinhos na carteira e sobre eles deitou de lado a cabecinha, perdendo os olhinhos na parede. Mergulhada em todo aquele branco, começou a imaginar o velhinho. Como ele tinha conseguido pintar tantas flores, borboletas, rios e gente com apenas 5 cores? Não era possível, pensava.

Aliviada pelo tocar do sinal, Aninha esperou um pouco os irmãos e com eles logo chegou em casa. Atravessando o portão, avistou o quadro que não havia conseguido pintar. Deu uns passinhos moles e pesados, deixou irem os irmãozinhos e, ali mesmo, de pasta jogada no chão, deixou-se ficar. Olhava em volta, via e revia as cores, mas não conseguia entender a arte do velhinho. Tudo com apenas 5 cores? Aconchegando-se perto da roseira, a menina esqueceu por um instante a tarefa. Ficou a admirar a delicadeza das folhinhas, o veludo das pétalas e aquela linda cor que o sol lateral inundava de nuances. Pra ver melhor, inclinou o pescocinho pra direita, depois pra esquerda, e foi aí que percebeu, no vermelho vivo da rosa, um pouco de roxo, um pouco de azul... O bonina!

Aninha levantou bruscamente para reparar melhor. Foi até a goiabeira e viu no tronco um pouco de preto, misturado com um pouco de vermelho e de verde. Viu nas folhas adultas um verde de vultos pretos, e nas jovens, um verde vivo, que brilhava como o branco. Assim também na horta. No balanço, nas telhas e na terra, viu o vermelho escurecer-se com o preto para virar marrom. Volks era isso e mais um pouquinho de amarelo. No balanço e nas paredes da casa, encontrou um laranja que ficava entre o amarelo e o vermelho. Voltou-se, por fim, para aquele belo céu de fim de tarde e viu, embaixo do azul, um pouco de amarelo, e de laranja, e de vermelho, e de lilás, e depois o horizonte.

Aninha foi correndo em direção à pasta, arrancou dela o caderno de artes e, deitando a barriga no chão de terra, começou a rabiscar o seu lar, até finalizá-lo novamente com a roseira do terreiro. Sacou da pasta a caixa de lápis-de-cor, que estranhamente parecia maior, e puxou dela as suas 6 cores. Aliviada por ainda ter uma cor a mais que Deus, repassou atenta todas as misturas e recomeçou a pintar o lar. Os lápis agora iam num zigue-zague leve e raspavam a folha num chu chu chu gostoso, formando uma aquarela. Caprichou a menina em cada detalhe, em cada tom, dando o melhor que podia. A última mistura que fez foi aquela bonita, o bonina, com que pintou as suas rosas. Pronto! Mal podia acreditar que havia conseguido pôr na folha branca o seu lar, luzindo com todas as cores que ele tinha.


Ali mesmo a menina deixou-se ficar, apreciando aquela belezura de pintura. Quando o dia foi se despedindo e a noite caindo, foi a vez da arte do velhinho. A menina despregou o olho do desenho e começou a reparar em tudo à sua volta. Em cada cor. Em cada sombra. E em como Ele ia mudando cada vez mais rápido as cores daquele quadro. Ficou assim... Até o grito de D. Maria, ao longe:

- Aninha, onde você está, menina? Vem tirar o uniforme e trocar a fralda do Diquinho pra mamãe!

Se já estava bem antes ou se veio depois desses desenhos, isso não faz diferença. O que importa é que naquele fim de tarde, ali, bem ali, pude ver pintado nas mais belas cores esse dom multiplicado de minha mãe, de fazer sempre muito com o pouco que tem.

                           [Poly Jeha]

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

A VIDA QUE VALE A PENA

PICASSO

Quarta-feira, 25 de agosto, manhã... Preparo-me para assistir a um ciclo de palestras, tarefa obrigatória para aqueles que ocupam certa função no local onde trabalho.
Sentada no auditório, mal consigo conter meu “entusiasmo”. Engraçado como as coisas perdem a graça quando são transformadas em obrigação. Os temas escolhidos são interessantes, percebe-se que houve uma preocupação da equipe organizadora em tornar o encontro proveitoso, mas, mesmo assim, continuo “entusiasmada”.
Primeiro palestrante. Tempo arrastando. Final da apresentação. Tramo comigo mesma: “E se eu escapar? Há muitos espectadores, ninguém dará pela minha ausência!” Francesamente, dirijo-me para a porta. “Espere, volte aqui!” Sou agarrada por uma colega de trabalho que também cumpre sua tarefa de ouvinte. “Nada de ir embora. Preciso de apoio. Ficaremos até o final!” Não tenho mesmo saída.
Segundo palestrante. Prevejo outro debate “entusiasmado”. Início da apresentação: “...Clóvis de Barros, titular da cadeira de Ética – USP...” Currículo extenso, títulos no Brasil e exterior. Penso “entusiasmada” comigo: “Que bom para ele!” E, após dez minutos de exposição, grata surpresa, estou completamente encantada por aquele homem. Frases certeiras, humor aguçado, vocabulário e cultura admiráveis. E tudo isso em um sujeito simples, cujo maior orgulho é seu título de Professor.
Platéia arrebatada, Professor Clóvis segue envolvendo e divertindo. Solidão, escolhas, satisfações, medos, realizações, angústias, enfim, situações cotidianas da vida, muitas vezes deixadas de lado, são trazidas à discussão de maneira única.
“A vida que vale a pena” vai sendo discutida e desvendada. Resumo rasteiro: cabe apenas a nós decidir como viver, assumindo riscos, sonhos, medos e esperanças. Descobrir nosso lugar de encaixe na engrenagem de um mundo cada vez mais veloz e chegar ao ponto máximo de fazer a vida valer por ela mesma. Simples assim. A vida que vale a pena é a que se vive plena, completa e satisfatoriamente. Viver a vida que vale a pena para nós mesmos e não a que valha a pena para os outros.
Quinta-feira, 26 de agosto, noite... Quatro retalhos juntos em mais um encontro. Conversa fácil, riso livre, confidências, desabafos. Contentamento puro. Insight! Minha vida valendo por ela mesma! Sorrio e faço um brinde ao Professor! [J.]