sábado, 31 de julho de 2010

OLHE COM QUEM ANDA OU TOME MUITO CUIDADO COM A SUA ESCOVA DE DENTES!


Segundo alardeia um fabricante de creme dental, 12 males podem atacar a nossa boca: cáries, problemas de gengivas, placas, bactérias, tártaro, mau-hálito, manchas, fragilidade do esmalte, desmineralização dos dentes, bactérias da língua, cáries nas raízes dos dentes e PH irregular.
Nada disso teria a menor importância para aquela libriana, não fosse ter sido informada de que sua preciosa escova de dentes azul fora “compartilhada”  com uma amiga e companheira de viagens.
Não apenas uma vez, num daqueles momentos de descuido, por que todos passam na correria do dia-a-dia. Não! A “comunhão” ocorreu várias vezes ao dia e durante os DEZ dias que durou a viagem de férias feita a Pernambuco, mais precisamente Tamandaré, em um paraíso chamado Carneiros.
“E agora?”, pensou a vítima do engano, enquanto olhava incrédula e fixamente a abilolada amiga que, cara traquinas, sorriso malicioso, revelava-lhe, com gosto, o segredo, que até então, certamente queimara-lhe as entranhas. A causa daquele riso mal contido era conhecer muito bem a amiga libriana, toda certinha (além de dada a algumas manias) e saber o quão imaculada podia ser, para ela, a sua escova de dentes azul!
“Tudo bem... Já passou... Acontece... Fazer o quê...” pensava a libriana ao se refazer do choque e tentando absorver da melhor maneira possível o impacto que causara aquela confidência. “Como uma pessoa não reconhece sua própria escova de dentes? Se ela usou minha escova durante toda a viagem, onde estava a dela? Ah... Com certeza, de tão atrapalhada, nem se lembrou de levar sua própria escova de dentes!” eram os pensamentos que, por outro lado, invadiam sua mente.
E a amiga “usurpadora” deliciando-se com a situação! Agora, riso frouxo, apreciando cada minuto do mal disfarçado desconcerto que tomara conta da outra, sempre tão senhora de si!
Sinceramente resignada, já que nada mais – mesmo, podia ser feito (e também, graças aos céus, pela certeza de estar com a boca perfeitamente saudável, já que acabara de fazer sua visita anual ao dentista) caiu também a libriana na mais aberta gargalhada!
Pensando bem, aquilo não lhe devia causar espanto. Amigas há muito mais de 10 anos, bem conhecia o jeito estorvado da ‘’sem-escova”.  Sabia muito bem que se  expunha a perigos desta natureza convivendo tão de perto com aquela trapalhona. Completamente amalucada, é certo, mas muito especial e única! Enfim... Nada como um pouco de adrenalina!
À noite, já em sua cama, o sono chega e leva o último pensamento da libriana: “Que sorte! Escapar de 12 problemas bucais! Não... Os meus problemas bucais mais os problemas bucais dela. 12 problemas bucais ao quadrado! Espera um pouco! A “sem-escova” é casada! Puxa... 12 problemas bucais ao cubo! É... Muita sorte mesmo!” [J.]


sábado, 24 de julho de 2010

MATERNIDADE

Pontinho, agora, está escondido debaixo das luvas de lã, dentro de uma pequena caixa. Sua respiração é quase imperceptível, nada mais que um leve ondular de penugem preta, só possível de se ver quando Luciana olha com cuidado em direção ao seu improvisado ninho de papelão.
Até meia hora atrás, era justamente o oposto. Pontinho ofegava, sem entender porque fora submetido a tantas provações, mal nascido.
O pequeno pintinho negro, ao que se sabe, nasceu ontem e, até ontem, tinha dois irmãos. Luciana - que de galinhas sabia muito mais ao molho pardo nalguma panela do que voando e ciscando, vivas em seu jardim – terminou por colocá-los junto a uma mãe galinha adotiva, com filhotes já nascidos há duas semanas. Não foi por maldade o ato, senão por ignorância. Nunca antes havia criado galinhas e ainda menos podia lidar com pintinhos abandonados pela progenitora.
O ocorrido se deu, em suma, porque a galinha-mãe procriou no mato e se recusava a permanecer presa no espaço que Luciana lhe destinara. Temendo que os três pintinhos morressem de frio ou de fome, na estranhamente gélida e úmida noite de finais de setembro, a estreante camponesa, recém-chegada da cidade grande - da qual havia resolutamente fugido, para sempre - pegou os pequeninos e os colocou com aquela que elegeu madrasta dos novos rebentos.
Tal ato desencadeou uma série de conseqüências.
A primeira delas foi o desespero da galinha-mãe, também de primeira viagem, que viu seus três filhinhos lhe serem roubados e lhes desconhecia o destino. Andou pelo terreiro sem descanso, ciscando e chamando suas crias, mas nenhuma delas respondeu ao seu chamado.
É que, na verdade, estavam os três pintinhos satisfeitos debaixo da mãe adotiva, que, pelo menos naquela noite, os aqueceu. Assim, sob o ponto de vista dos recém-nascidos, estava resolvido o problema, ou melhor, não havia problema; haviam nascido, sua mãe os acolhera, tinham asas quentes sob as quais se defendiam do frio; bastava, pois, crescer, aprendendo calmamente o ofício de pertencer a sua espécie.
Desconheciam eles que aquela não era sua mãe verdadeira. Como poderiam sabê-lo? Essa ignorância, entretanto, não era partilhada pela galinha e, em sua recente vida, terminariam os pequenos filhotes por provar, na própria pele, que às galinhas, ou pelo menos a uma delas, em especial, não apetecia serem mães adotivas.
E a segunda conseqüência, pois, foi que o primeiro pintinho apareceu sem vida na manhã seguinte. De uma forma inexplicável, estava fora do pequeno galinheiro, embora fosse diminuta a passagem que o havia lançado até ali.
Mas Pontinho continuava lá. Não sentiu falta de seu irmãozinho; havia outros nove, com quem partilhava a alegria de ser pintinho, muito embora oito deles fossem um pouco maiores que ele, o que não o constrangia, em absoluto. Comia, bebia e se escondia debaixo do calor de sua mãe adotiva.
Sendo assim e como chovesse e a mãe verdadeira continuasse fugitiva, entendeu Luciana que a morte do primeiro pintinho fora acidental e manteve os outros dois no lugar onde estavam.
Não foi, novamente, uma boa decisão.
À tarde aconteceu o (im)previsto. O outro irmão de Pontinho também estava morto, igualmente lançado para fora do ninho como um invasor mal quisto.
Então Luciana não mais duvidou. Compreendeu que, ao contrário do que ouvira falar, as galinhas até poderiam adotar filhotes, mas isso acontecia quando e como queriam e não sempre que eles lhe eram impostos. Era necessário, então, tirar o último pintinho do meio dos demais e retornar com ele para a mãe verdadeira, a fim de evitar a quarta consequência.
Pontinho, entretanto, não compartilhava do medo de sua...dona, digamos assim. Continuava vivendo sua vida, alheio ao perigo que agora claramente o cercava. Piava, comia e até se arriscava a pequenas carreiras, junto com seus irmãos.
Entretanto, mãos humanas, a seu despeito, novamente o retiraram do seu lar recém-criado e o retornaram a sua mãe oficial, que ainda zanzava pelo terreiro, desgostosa.
Mas não se entendiam, Pontinho e sua mãe-galinha. Parecia que a mãe novata não reconhecia seu nenezinho. Muito embora apartasse Luciana toda vez que ela tentava tirá-lo de sua guarda, não era uma mãe amorosa. Pisava-lhe em cima, dava-lhe bicadas e, se às vezes o aconchegava, o mais das vezes o repelia. Luciana desanimava; por culpa de seu ato inicial, parecia que, de uma forma ou de outra, Pontinho teria o mesmo destino dos irmãos.
O pequeno pintinho, entretanto, persistia, embora não entendesse porque o haviam tirado da companhia de seus outros irmãos maiores e das asas da mãe de adoção – que para ele, era sua mãe verdadeira.
Ali, no meio da grama densa, sozinho, fora do aconchego das asas maternas, numa imensidão para ele imensurável, lutava sob o jugo de uma galinha que, como? não poderia ser sua mãe, já que apenas o bicava.
Ao cabo de algum tempo, desesperou-se. Fugiu correndo dessa mãe ingrata e madrasta, em desabalada carreira, piando agudamente, envolto no ar do mundo que naquele momento havia se tornado ininteligível. Um pequeno ponto negro, que mal se via no meio da imensidão verde do mato.
Luciana recapturou-o. Envolveu-o num par de luvas velhas de lã e colocou-o dentro de uma caixinha quente. Seu coração, como o dele, também se acelerara.
Luciana estava tomada de amor.
E, por isso, agarrou-se à idéia de que Pontinho era um pintinho muito, muito forte. Sabia que durante seu choco, ao relento, houve violentas tempestades e o frio, incomum no mês de setembro, deu suas caras como se fora o mais profundo inverno.
Numa tarde, a reviravolta de um calor recalcitrante trouxe uma tempestade de granizo que deixou todo o terreiro coberto de pedras de gelo. Os demais pintinhos, que estavam sendo chocados juntamente com Pontinho, pereceram. Seus únicos dois irmãos soçobraram, vítimas de sua ignorância. Mas Pontinho sobreviveu. Não só às tempestades, mas também a sua mãe adotiva, a sua mãe verdadeira e, principalmente, a ela, que nada entendia sobre galinhas e suas crias.
Agora, dentro de sua caixinha de papelão, em meio a retalhos e luvas, parecia que o pintinho dormia. Às vezes, escutava, atenta, uma leve manifestação de vida. Um pio fraco e solitário. De tristeza, talvez. Ontem tinha mãe e irmãos. Agora está sozinho.
Assim ficaram, até o fim da tarde. Luciana, como Pontinho, suspirava, tomada de terneza, mel, maternidade. Precisava salvá-lo.
Mas como já escurecia, Luciana pensou que sua batalha pela sobrevivência do serzinho estava adiada para o dia seguinte. Contudo, para sua surpresa, quando saía do quarto, Pontinho acordou com a mesma energia antiga. Voltou a piar copiosamente e sua mãe, lá de fora da casa, escutava e respondia nervosa ao seu chamado.
Estava resoluto o pintinho. Ele queria sua mãe-galinha. Colocados juntos, a cena anterior se repetiu. Mais uma vez a tentativa de aproximação resultava em bicadas e pios agudos, mais uma vez o pintinho era repelido. Por um breve momento, de grande expectativa, a galinha o aceitou e recolheu o pintinho sob suas asas, mas a afetuosidade demonstrada nada durou. Novamente postou-se de pé e voltou a bicá-lo e a pisar nele. Novamente ele se desesperou, novamente Luciana o recolheu.
Aquele serzinho, entretanto, entre as mãos de Luciana, preferia insistir em que sua mãe aceitasse finalmente sua condição. Continuava piando a sua procura, irrequieto nas mãos de Luciana, tentando livrar-se daquela pequena prisão.
Luciana decidiu tentar de novo. Precisava redimir-se. Como já anoitecia, depois de algum esforço, conseguiu pegar a galinha e trancá-la num lugar fechado e à prova de fugas. Quando finalmente escureceu, levou o pintinho para junto de sua mãe, colocou-o sob panos velhos e ali, uma vez mais, ele insistiu, piando e pedindo o calor das asas maternas.
A galinha resistiu um pouco, mas como era noite, recolhia-se, ao modo das galinhas, sejam elas mães ou não. Deitada, permitiu que Pontinho finalmente se escondesse sob suas asas e, pela primeira vez, o pintinho deixou de piar.
Aliviada, mas relutante, Luciana deixou-o no novo ninho, exposto a sua mãe indecisa sobre a maternidade. Pontinho seguia seu destino.
Sua inquietude, entretanto, a fez voltar ao ninho, voltar a casa, buscar a lanterna e voltar para o ninho. Terminou por se deitar rente ao chão e ficou ali, parada, olhando, pela primeira vez, a galinha sob o foco de luz.
Viu seus olhos amarelos e atentos, eram ríspidos, tinha medo? A galinha também olhava para ela. “Descendentes de dinossauros, as galinhas. Na verdade, do Tyrannosaurus Rex, não é incrível?" Não conseguia sair de lá. Escutava seu cacarejar ameaçador, olhava suas penas multicoloridas, “tão bonita, a galinha”.
Quis conhecer a galinha. Entrar dentro dela, de seus sentidos, quis ser galinha, quis unir-se nela. “Era possível? Não tinham, então, uma primordial animalidade comum”?
E na escuridão da noite viu, sobressaltada, que de indistintos ninhos, trançados nas paredes, pedras, buracos e touças de mato à sua volta se abriam inúmeros ovos e deles saiam pintinhos solitários, perdidos, que piavam, piavam e piavam, impossivelmente frágeis em sua pequenez num grande mundo sem galinhas.
Corriam atordoados e chocavam-se uns contra os outros, embalde, porque não se reconheciam como espécie. Ao contrário, parecia se verem como inimigos e a ela, andando entre eles, agora nua e de tamanho incomensurável, como a um inimigo ainda maior.
Luciana piava. O som insistente e estridente que emitia a fazia, diferentemente deles, chorar. Imensa, procurava reunir os animaizinhos, mas a cada passo que dava fazia tremer a terra em seu redor, o que os assustava ainda mais; minúsculos a seus pés, perdiam-se, fora de seu mundo.
Fatigada, Luciana parou. Mesmo diante de seu tamanho e peso, o destino havia, mais uma vez, vencido. Não conseguira salvar nem sequer um daqueles serizinhos. Era noite, estava frio e eles não sobreviveriam. Chorando, deitou-se, vencida.
Foi então que o piar dos pintinhos se alterou. Diminuía, paulatinamente, sua extensão e volume. Escutava-os agora calmos e compassados. Sentiu, com espanto, que eles começavam a se abrigar nela. Sob seus braços, suas pernas, seu colo, suas mãos, seu ventre vinham aconchegar-se um sem número de pintinhos e ela, transformada numa nova espécie, a um só tempo quente, elástica e aconchegante, apenas mais se intumesceu.
Reconheceu, então, que tudo estava exatamente em seu lugar.
Acordou com o sol batendo em suas pernas. Examinou o galinheiro. Pontinho e sua mãe-galinha estavam reconciliados.
Fitou o céu. Estava azul. O dia era quente e em paz. [Marina Procópio]

sábado, 17 de julho de 2010

AMADURECER


Dona Zezé:
Era da cor e tão trivial quanto a expressão ‘de ébano’. E muito magra. O couro duro, como o de todos que vivem ... “mais assados que assim” ... (para usar a expressão da mãe da menina).

A menina:
Sentia-se tão fundamental. Como, aliás, sentem-se todos os moços. E corria. Contra sensos comuns. Contra seus próprios medos. Contra o tempo. Da inimizade com ele, inclusive, nasceram vários níveis de importância.

O fato:
Dona Zezé lavava as roupas da menina. A menina foi morar a mil e quinhentos quilômetros de distância, para trabalhar.

O diálogo:
- Venho despedir-me da senhora. Vou para Salvador amanhã.
- Não se vá minha filha, não se vá. Quem irá tomar conta de suas roupinhas? (chorando)

O sentimento da menina:
- Roupas estão no último grau das minhas importâncias..
Porém, importâncias deixaram de ser. Ou passaram a existir.
Também elas transformaram a menina.
Passou o tempo.

A memória da menina:
Olhos apertadinhos, vivazes. De quem a amou, profundamente. E de si deu, possível e melhor: roupas lavadas. [Juliana]


terça-feira, 6 de julho de 2010

BREVÍSSIMO TRATADO DO SE CORRER A CIDADE PEGA, SE FICAR ELA TE COME.

Dos mais que breves prolegômenos: 

Ele era uma pessoa, uma pessoa tranquila. Seu erro foi se adaptar com sucesso à vida de um grande centro urbano. Transformou-se num piscar num vulto apressado e esbaforido, com ambição de onipresença. O seu primeiro passo foi negar o tempo. Logo depois, passou a negar-se a si mesmo. Imediatamente, passou à negação do resto. Fez tudo isso sem perceber. Tempo não tinha nem pra pensar. Não viu sua vida passar, de tão sem tempo para respirar, se alimentar, repousar, amar, refletir ou sequer se lembrar. No fim das contas, deixou a cidade o devorar.

De como a selva virou cidade:

Pra desordem e os perigos da natureza, civilização! Pra aplacar a selva, fazer calar os bichos e destemer as feras, cidades! Pra maior comodidade, ganho de tempo e vida longa e de qualidade, bens e serviços! Pras necessidades, consumo! Pras secreções, esgoto! Pra maior potência e rapidez de movimento, máquinas de centenas de cavalos! Pra melhor conservação das vias, asfalto! Pra melhor aproveitamento do espaço, prédios! Pra melhor conviver, civilidade! Pra melhor viver, urbanidade!

De como a cidade virou selva:

O que era solução tornou-se excesso e beirou o caos. Excesso de gente, multidão! Excesso de coisas, pressão! Excesso de carros, congestão! Excesso de prédios, sufocação! Excesso de consumo, privação! Excesso de produção, destruição! Excesso de lixo, podridão! Excesso de liberdade, perversão! Excesso de tudo, explosão! Do tempo à pressa. Da civilidade à competição. Da segurança ao medo. Medo de não ser, de não ter, de não poder, de não ter tempo. Medo de viver e medo de morrer.

De como a cidade o engoliu:

De repente, mais rápido do que podia prever, chegou o dia em que sua vida deixou de ser passagem pra ser trânsito veloz. A consciência que ele primeiro perdeu foi a do tempo. Agora passava despercebido, como se não existisse, o tempo calmo e marcado das árvores, dos animais e dos outros ciclos da vida, inclusive da sua própria. Era tanta coisa pra fazer, pra ter e pra ser, que ele passou a dedicar a isso todos os minutos de todas as horas de todos os seus dias...

Sem perceber, trocou o ar entrando macio pelas narinas, enchendo os pulmões e dilatando as costelas pela aspereza da respiração curta e afobada inundada de adrenalina. Trocou a lenta mordida do alimento bem preparado pelo engolir qualquer coisa que aparecia à frente. Trocou as horas deitado em sono pelas horas sentado em frente ao PC e à TV. Enfim, trocou as pessoas pelos títulos, cargos e cifrões, e passou a trabalhar muito, mas muito, mas muito, pra ganhar dinheiro, muito dinheiro, pra ter tudo. Foi exatamente assim que ele virou meio pra conseguir tudo o que queria, e perdeu o fim...

Ele agora transita a não sei quantos estímulos por segundo, a não sei quantas escolhas por minuto, a não sei quantos MB por site. Na terra, transita a não sei quantos por hora, cercado por milhares de carros de centenas de cavalos, que uivam e berram com suas buzinas, avançando raivosos, sem lei ou educação. E a multidão, com ele em trânsito, sempre num rush maluco, que o puxa e empurra, como estouro de boiada indo pros mesmos lugares nas mesmas horas. E ele ali, em meio àquela loucura, querendo sempre estar em algum outro lugar...

Ele agora não enxerga nada nem ninguém, e também não lê, só vê, e de relance. Vê mil imagens, mil cores, mil formas, mil coisas que não sabe o quê. Ele agora não escuta nada, nem ninguém. Ele só ouve. Ouve mil sons, mil tons, mil não sabe o quê. Ele agora naum fala, ele tc (tecla). Deixou-se levar por essa imensa onda d linguagem q reflete bem esse jeito d viver. Essa linguagem d mensagens instantâneas q chovem sobre as cabeças d todo o globo. Essa linguagem q se pudesse d tão rápida alcançava a luz! Essa linguagem jorrada q diz pouco ou quase nada. Essa linguagem assim solta sem sentido vomitada sem ponto sem pausa sem ar sem respiro sem tempo pra entender sem tempo pra pensar...

Agora ele vive assim, estressado, sempre apressado. Outro dia saía de casa mais uma vez atrasado. Muito rápido passou o cruzamento, quase sem olhar. Nem ia poder parar o carro pra uma menininha que, no quarteirão seguinte, dava seu primeiro passo no asfalto em direção à escola. Ele só foi vê-la direito pelo retrovisor esquerdo, dando o segundo passo sobre o asfalto milésimos de segundos depois de seu carro ter passado. Nesse dia, como em outros, dirigia em altíssima velocidade, levando a vida em altíssima voltagem. Justo ele, que não se achava perigoso, virou o cérebro de uma máquina de mil cavalos, mais brutal e letal que qualquer fera ou veneno. Isso tudo sem perceber...

De um rápido lance de consciência:

Num belo dia, num desses que ele nunca percebia, algo, no entanto, lhe despertou a consciência. Ele percebeu que, mesmo tendo ao seu dispor quase todos os bens, todas as lojas e restaurantes, livrarias e atrações, mesmo tendo quase tudo que queria, vivia ainda em privação. Vivia sem sentir o gosto e o valor de cada coisa. Tinha de tudo muito, e tudo é muito. Nada era único, nada valia. Quanto mais coisas ele tinha, mais tempo e energia reclamava esse ciclo estranho do ter e manter. Essa fera gorda, que, quanto maior e mais alimentada, mais voraz ficava, com nada se saciava...

Num estalo, ele se percebeu fatigado e avelhantado. Havia corrido mais e em velocidade muito maior do que podia. De tanto olhar pra fora, pro que queria ter, ele percebeu que se esqueceu de olhar pra dentro, pro que já tinha e pro que já era. E agora estava cansado. Cansado de ter sem razão, de ser sem razão e viver sem razão, pulando de galho em galho, de compromisso em compromisso. Justo agora, que quase não tem mais tempo... Foi aí que ele se lembrou do tempo! Percebeu que o desconsiderou, que o insultou. Não deu outra: o tempo virou seu inimigo...

Ele agora está cansado. Cansado dessa vida urbana, estrondo rouco e dissonante do qual não tira nenhuma música. Desse mundo insano, desse stress, dessa pressa. Cansado de não ter tempo. Tempo pra digerir, pra sentir, pra pensar, pra refletir. Cansado desse jeito de viver. O ar o mata, a comida o mata, o barulho o mata, o trabalho o mata, o sedentarismo o mata, envelhecer o mata, o outro o mata, o acaso o mata, tudo o mata. Essa vida o deixou medroso de tudo, inseguro em tudo, agressivo em tudo, pronto pra gritar, xingar, buzinar e explodir. Agora, só agora, ele se pergunta o porquê dessa vida...

Agora, só agora, ele se lembra das expressões que ouvia repetidas, mas que, pela falta de tempo e reflexão, uso mais basilar da razão, não podia escutar: “selva de pedra!”, “capitalismo selvagem!”, "homem lobo do homem!". Depois de escutá-las como devia, pensou imediatamente no quão selvagem ele havia se tornado. De como ele havia, tendo a cidade e toda aquela urbanidade como cenário, virado bicho atordoado, desesperado, pronto pra morrer e pra matar. Pensou tudo isso num rápido lance de consciência...

De como a cidade o devorou:

Quando por esse breve instante de sanidade ele se deixou tocar, perguntou, então: “é como selvagem que quero viver?”... Pondo rapidamente um fim a esse instante, seguiu imediatamente para a questão seguinte e nela ficou por outro instante: “para onde correr?”... A resposta veio-lhe imediatamente no próximo instante: “Se correr a cidade pega. Mas se ficar... Ah, se ficar, ela te come!”.                            
[Poly Jeha]

Moscou I, Kandinsky, 1916