Ele era uma pessoa, uma pessoa tranquila. Seu erro foi se adaptar com sucesso à vida de um grande centro urbano. Transformou-se num piscar num vulto apressado e esbaforido, com ambição de onipresença. O seu primeiro passo foi negar o tempo. Logo depois, passou a negar-se a si mesmo. Imediatamente, passou à negação do resto. Fez tudo isso sem perceber. Tempo não tinha nem pra pensar. Não viu sua vida passar, de tão sem tempo para respirar, se alimentar, repousar, amar, refletir ou sequer se lembrar. No fim das contas, deixou a cidade o devorar.
De como a selva virou cidade:
Pra desordem e os perigos da natureza, civilização! Pra aplacar a selva, fazer calar os bichos e destemer as feras, cidades! Pra maior comodidade, ganho de tempo e vida longa e de qualidade, bens e serviços! Pras necessidades, consumo! Pras secreções, esgoto! Pra maior potência e rapidez de movimento, máquinas de centenas de cavalos! Pra melhor conservação das vias, asfalto! Pra melhor aproveitamento do espaço, prédios! Pra melhor conviver, civilidade! Pra melhor viver, urbanidade!
De como a cidade virou selva:
O que era solução tornou-se excesso e beirou o caos. Excesso de gente, multidão! Excesso de coisas, pressão! Excesso de carros, congestão! Excesso de prédios, sufocação! Excesso de consumo, privação! Excesso de produção, destruição! Excesso de lixo, podridão! Excesso de liberdade, perversão! Excesso de tudo, explosão! Do tempo à pressa. Da civilidade à competição. Da segurança ao medo. Medo de não ser, de não ter, de não poder, de não ter tempo. Medo de viver e medo de morrer.
De como a cidade o engoliu:
De repente, mais rápido do que podia prever, chegou o dia em que sua vida deixou de ser passagem pra ser trânsito veloz. A consciência que ele primeiro perdeu foi a do tempo. Agora passava despercebido, como se não existisse, o tempo calmo e marcado das árvores, dos animais e dos outros ciclos da vida, inclusive da sua própria. Era tanta coisa pra fazer, pra ter e pra ser, que ele passou a dedicar a isso todos os minutos de todas as horas de todos os seus dias...
Sem perceber, trocou o ar entrando macio pelas narinas, enchendo os pulmões e dilatando as costelas pela aspereza da respiração curta e afobada inundada de adrenalina. Trocou a lenta mordida do alimento bem preparado pelo engolir qualquer coisa que aparecia à frente. Trocou as horas deitado em sono pelas horas sentado em frente ao PC e à TV. Enfim, trocou as pessoas pelos títulos, cargos e cifrões, e passou a trabalhar muito, mas muito, mas muito, pra ganhar dinheiro, muito dinheiro, pra ter tudo. Foi exatamente assim que ele virou meio pra conseguir tudo o que queria, e perdeu o fim...
Ele agora transita a não sei quantos estímulos por segundo, a não sei quantas escolhas por minuto, a não sei quantos MB por site. Na terra, transita a não sei quantos por hora, cercado por milhares de carros de centenas de cavalos, que uivam e berram com suas buzinas, avançando raivosos, sem lei ou educação. E a multidão, com ele em trânsito, sempre num rush maluco, que o puxa e empurra, como estouro de boiada indo pros mesmos lugares nas mesmas horas. E ele ali, em meio àquela loucura, querendo sempre estar em algum outro lugar...
Ele agora não enxerga nada nem ninguém, e também não lê, só vê, e de relance. Vê mil imagens, mil cores, mil formas, mil coisas que não sabe o quê. Ele agora não escuta nada, nem ninguém. Ele só ouve. Ouve mil sons, mil tons, mil não sabe o quê. Ele agora naum fala, ele tc (tecla). Deixou-se levar por essa imensa onda d linguagem q reflete bem esse jeito d viver. Essa linguagem d mensagens instantâneas q chovem sobre as cabeças d todo o globo. Essa linguagem q se pudesse d tão rápida alcançava a luz! Essa linguagem jorrada q diz pouco ou quase nada. Essa linguagem assim solta sem sentido vomitada sem ponto sem pausa sem ar sem respiro sem tempo pra entender sem tempo pra pensar...
Agora ele vive assim, estressado, sempre apressado. Outro dia saía de casa mais uma vez atrasado. Muito rápido passou o cruzamento, quase sem olhar. Nem ia poder parar o carro pra uma menininha que, no quarteirão seguinte, dava seu primeiro passo no asfalto em direção à escola. Ele só foi vê-la direito pelo retrovisor esquerdo, dando o segundo passo sobre o asfalto milésimos de segundos depois de seu carro ter passado. Nesse dia, como em outros, dirigia em altíssima velocidade, levando a vida em altíssima voltagem. Justo ele, que não se achava perigoso, virou o cérebro de uma máquina de mil cavalos, mais brutal e letal que qualquer fera ou veneno. Isso tudo sem perceber...
De um rápido lance de consciência:
Num belo dia, num desses que ele nunca percebia, algo, no entanto, lhe despertou a consciência. Ele percebeu que, mesmo tendo ao seu dispor quase todos os bens, todas as lojas e restaurantes, livrarias e atrações, mesmo tendo quase tudo que queria, vivia ainda em privação. Vivia sem sentir o gosto e o valor de cada coisa. Tinha de tudo muito, e tudo é muito. Nada era único, nada valia. Quanto mais coisas ele tinha, mais tempo e energia reclamava esse ciclo estranho do ter e manter. Essa fera gorda, que, quanto maior e mais alimentada, mais voraz ficava, com nada se saciava...
Num estalo, ele se percebeu fatigado e avelhantado. Havia corrido mais e em velocidade muito maior do que podia. De tanto olhar pra fora, pro que queria ter, ele percebeu que se esqueceu de olhar pra dentro, pro que já tinha e pro que já era. E agora estava cansado. Cansado de ter sem razão, de ser sem razão e viver sem razão, pulando de galho em galho, de compromisso em compromisso. Justo agora, que quase não tem mais tempo... Foi aí que ele se lembrou do tempo! Percebeu que o desconsiderou, que o insultou. Não deu outra: o tempo virou seu inimigo...
Ele agora está cansado. Cansado dessa vida urbana, estrondo rouco e dissonante do qual não tira nenhuma música. Desse mundo insano, desse stress, dessa pressa. Cansado de não ter tempo. Tempo pra digerir, pra sentir, pra pensar, pra refletir. Cansado desse jeito de viver. O ar o mata, a comida o mata, o barulho o mata, o trabalho o mata, o sedentarismo o mata, envelhecer o mata, o outro o mata, o acaso o mata, tudo o mata. Essa vida o deixou medroso de tudo, inseguro em tudo, agressivo em tudo, pronto pra gritar, xingar, buzinar e explodir. Agora, só agora, ele se pergunta o porquê dessa vida...
Agora, só agora, ele se lembra das expressões que ouvia repetidas, mas que, pela falta de tempo e reflexão, uso mais basilar da razão, não podia escutar: “selva de pedra!”, “capitalismo selvagem!”, "homem lobo do homem!". Depois de escutá-las como devia, pensou imediatamente no quão selvagem ele havia se tornado. De como ele havia, tendo a cidade e toda aquela urbanidade como cenário, virado bicho atordoado, desesperado, pronto pra morrer e pra matar. Pensou tudo isso num rápido lance de consciência...
De como a cidade o devorou:
Quando por esse breve instante de sanidade ele se deixou tocar, perguntou, então: “é como selvagem que quero viver?”... Pondo rapidamente um fim a esse instante, seguiu imediatamente para a questão seguinte e nela ficou por outro instante: “para onde correr?”... A resposta veio-lhe imediatamente no próximo instante: “Se correr a cidade pega. Mas se ficar... Ah, se ficar, ela te come!”.
[Poly Jeha]
Moscou I, Kandinsky, 1916
Pô, Polyana, tava aqui preparando um textinho sobre as delícias do consumo... Agora cê acabou comigo! Fui apunhalada, apanhada no pulo do gato. Sacanagem... Agora vou ter que fazer um contorcionismo que nenhum gato até hoje fez. Dura desse jeito, será que eu consigo?
ResponderExcluirSeu pequeno tratado do grande engodo ficou ótimo.
Beijos,
M.
Puta merda (opsss...)! Desculpa!
ResponderExcluirPutz Plin!
Você também escangalhou comigo!
Bloqueou minha postagem futura!
Mas foi brilhante! Profundamente brilhante!
E ainda por cima coroou com um Kandinsky!
Esperado! Vai... Continua... Solta tudo!
Vou adorar.
Jotinha
Polizinha querida!
ResponderExcluirImpossível respirar lendo seu texto! Impossível não se identificar... parabéns...
Amamos (todas!).
Beijos, obrigada por ontem (apesar do chororô do caverninha) e por nossa tão amada amizade!
Juca