terça-feira, 10 de agosto de 2010

ÓRFÃOS DE LÍNGUA


Devido à boa formação que recebi em colégios particulares de uma das capitais do país, acreditava eu que não pertencia à massa dos brasileiros que "fala errado" ou "escreve mal". Embora não me gabasse desse privilégio, por compaixão daqueles que não tiveram as mesmas oportunidades que eu, confesso que essa crença me confortava e muito. Afinal, inúmeros estudos científicos vêm há muito demonstrando que aqueles que manejam bem a linguagem têm muito mais chances de sucesso na vida do que os "iletrados".

Tudo ia relativamente bem, até que, nos finais de 2005, tendo rumado para Coimbra - Portugal, onde morei por dois anos, para realizar o meu curso de mestrado, tive uma interessante experiência linguística: escutei minha língua sendo falada e a vi sendo escrita por uma nação completamente diferente. No início, o som consonantal e sibilado me confundia e incomodava os ouvidos. Depois, a ordem das palavras, a colocação pronominal e a conjugação dos verbos é que me saltavam aos olhos, intimando para uma releitura. Em poucos dias, no entanto, já havia me acostumado a esse novo português. Era o que eu pensava.

Aprendidas as formalidades necessárias para o trato com as pessoas em geral e com os professores e funcionários da universidade, já me sentia segura para me comunicar. Tal não foi a minha surpresa, quando, já nos primeiros debates acadêmicos, percebi que sempre me faltava ao discurso palavra mais apropriada ou maior correção gramatical. Após minhas inserções, passei a me sentir, como nunca antes, um pouco envergonhada, por não ter sabido me expressar naquele português tão pomposo e correto de meus professores e colegas lusitanos. Comparando-me a eles, percebi que me faltavam, para não desfilar uma lista muito grande, extensão de vocabulário, familiaridade com as normas e os indispensáveis traquejo e naturalidade com a língua.

Para completar, comecei a ouvir ao meu redor, com uma chata insistência, que a minha língua era o "brasileiro" e, por exclusão, não o "português" que havia me acompanhado desde que nasci. "Quanta audácia!", pensava eu. "Me colonizaram e exploraram o país, me impuseram à força sua língua e, depois, quando a ouvem de meus lábios brasileiros, lhe rejeitam a paternidade, ou melhor, a maternidade". Até hoje, quando me lembro desses episódios, não sei dizer quem envidava mais esforços: se eram os portugueses, renegando aquilo que ouviam da boca dos miscigenados, ou se era eu, reinvindicando como órfã desesperada a maternidade da minha língua-mãe.

Ao fim do mestrado, retornei de vez ao Brasil e passei à fase das depurações. No que respeita à língua, após ter me reacostumado com o nosso "português" e ter relido alguns dos livros de Machado de Assis, percebi com uma clareza meridiana que, de mãe, essa nossa língua nada tem. Se, após o banimento do "tupi-guarani" pela "língua oficial" instituída por Marquês de Pombal, foi possível aos senhores do século XIX (ocupantes de cargos públicos e elite econômico-cultural do país) se comunicarem num "português" exímio, de luxo, à la Metrópole, isso não se mostrou possível para os nativos, os miscigenados ou a grande massa brasileira, que, sem saber ler e escrever, se formou através da língua popular, misturada nas palavras, nos jeitos de falar, de pensar, nas crenças e nos costumes.

Hoje fica mais fácil para mim compreender porque a língua que eu ouvia em casa, da boca de meus avós, era tão diferente da língua que me ensinavam na escola. Hoje fica mais fácil para mim compreender porque a narrativa oral de histórias, contadas ao lado do fogão, é mais prazenteira que o português rijo dos livros empurrados guelas abaixo pelas escolas. Hoje fica mais fácil para mim compreender porque era tão difícil me imiscuir, aos 14 anos, mesmo que bem alfabetizada, no "português examplar" dos textos de Machado de Assis.

A consciência da orfandade, que adquiri depurando Portugal, me cochichou que eu talvez tenha me equivocado àquela época, ao reivindicar com tanta veemência uma maternidade para a minha língua. Cochichou de novo, propondo que eu extraia da denominação "brasileiro", dada pelos portugueses à nossa língua, algo de melhor. Cochichou ainda essa minha consciência que talvez seja melhor que nós, brasileiros, assumamos a nossa orfandade de língua, catemos os cacos dos genes que ainda nos restam e, com as velhas e as novas palavras, construamos juntos, à la brasileira, no falar e na escrita, a nossa verdadeira língua-materna, ou melhor, o nosso "brasileiro".

[Poly Jeha]

4 comentários:

  1. Poly, como diz o Veríssimo, no "O Gigolô das Palavras":
    "Respeitadas algumas regras básicas da Gramática, para evitar os vexames mais gritantes, as outras são dispensáveis. A sintaxe é uma questão de uso, não de princípios. Escrever bem é escrever claro, não necessariamente certo. Por exemplo: dizer "escrever claro" não é certo mas é claro, certo? O importante é comunicar. (E quando possível surpreender, iluminar, divertir, mover... Mas aí entramos na área do talento, que também não tem nada a ver com Gramática.) A Gramática é o esqueleto da língua. Só predomina nas línguas mortas, e aí é de interesse restrito a necrólogos e professores de Latim, gente em geral pouco comunicativa. Aquela sombria gravidade que a gente nota nas fotografias em grupo dos membros da Academia Brasileira de Letras é de reprovação pelo Português ainda estar vivo. Eles só estão esperando, fardados, que o Português morra para poderem carregar o caixão e escrever sua autópsia definitiva. É o esqueleto que nos traz de pé, certo, mas ele não informa nada, como a Gramática é a estrutura da língua mas sozinha não diz nada, não tem futuro. As múmias conversam entre si em Gramática pura".

    Ou nosso querido Oswald de Andrade:

    "Dê-me um cigarro
    Diz a gramática
    Do professor e do aluno
    E do mulato sabido
    Mas o bom negro e o bom branco
    Da Nação Brasileira
    Dizem todos os dias
    Deixa disso camarada
    Me dá um cigarro".

    Beijos,
    M.

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  2. Marina,
    Adorei o texto do Oswald!!!
    Pois é... Quando adquirimos a consciência de que nossa língua é de fato brasileira, passamos a compreendê-la melhor, a sermos mais condescendentes e mais amigos dela e, como que de presente, ficamos mais soltos e mais livres para brincar e criar, não é?!

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  3. Muito bem Pupita!!! Gostei. Realmente acho que devíamos assumir uma língua própria, meio tupiniquim e meio portuguesa: o "brasileiro"!

    Bjucos!

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  4. Pois é Plinzinha (onde a J arrumou este lindo apelido para você?)...
    Talvez soframos é com mamães em excesso... Umas mais esquecidas que outras... Outras mais importantes que umas...
    A mãe uso, a mãe africana, as incontáveis mães indígenas e européias... E a incompreensão desta multiplicidade gerar outras inúmeras incompreensões...
    Múmias e portugueses que o digam!

    "Ali, trancado no quarto, ele varava noites estudando a gramática portuguesa; repetia mil vezes as palavras mal pronunciadas: atonito, em vez de atônito. A acentuação tônica... um drama e tanto para Yaqub. Mas ele foi aprendendo, soletrando, cantando as palavras, até que os sons dos nossos peixes, plantas e frutas, todo esse tupi esquecido não embolava mais na sua boca." (trecho do livro Dois irmãos, de Milton Hatoum - página 31)

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