Esse mundo que o sinhô tá veno
não dá pra ver direito só de passagem
Tem de ficar uns meis com a gente
que é pra sentir as paragem
Se vai de passagem só enxerga a pobreza
A terra seca, o rio escasso e os muito arbusto
as mão e a cara rugada e queimada de sol
é o que fica na foto do viajante
Mas se fica pra sentir as paragem, meu sinhô
bebe a água do rio e cora nesse sol judiado
é que vê que esse mundo aqui do vale vale muito
vale mundo inteiro que não se vê
Nesse curso do Jequitinhonha, meu sinhô
tem de terra e tem de água
de cada um só um pouco
bem pouquinho mesmo, módi a gente dá valor
Largo mesmo é só o céu, os santo e a dor
Desses todo mundo prova um pouquinho
novo, véio, rico, pobre, pardo ou de cor
módi seguir vivendo em bênção nesse lugar
Ladeando o Jequitinhonha ou os magro riachinho,
um rosário de terrinhas de roça, de vila ou pequena cidade
Muitos são os homens da roça e poucos os moço de cidade
As muié e as criança, contudo, vão levano por todo lado
Como eu disse, meu sinhô, não se engane
aqui há do bem e também do mal, um pouco de cada um
misturado no coração de cada qual
Primeiro vou do pió, pra depois redimir com o mió
Nessas banda há gente ruim sim, meu sinhô, se há
Gente ruim de sangue, bode véio mesmo, que se perde de tanta maldade
que morre dizendo que se soubesse que ia sofrer tanto assim pra se ir
ia era muito mais maldar e matar
Há gente ruim de outro jeito também
que tira à força dos muitos pobre o pouco que a vida ainda dá
Bota medo, briga ou mata em ponta da faca ou bala de espingarda
pra módi tirar, daqui e dali, um bocadinho de terra, de água ou de ar
Essa gente, meu sinhô, é aquela que fácil se acovarda
Nasce ou vive de umas poucas posse e de dar o que falar
querendo se fazer rico do que essa vida nunca dá
que é segurança contra a miséria, a cruz, a morte, o que há
Enquanto essa gente continua a mandar e desmandar
não há verdadeira saída, meu sinhô, pros lado de cá
O que há é seguir vivendo a vida, cada qual no seu canto
rezano pra um dia com eles não ter de topá
Nessas terra há também uma outra maldade, meu sinhô
Não é da ganância ou da covardia perante as dificuldade da vida
É a da raiva e da ira por coisa boba que afete honra ou coração
que também mata em faca, cabo de enxada, arma feita ou podão
O que eu sinceramente não sei dizer, meu sinhô
é se esta é menos pior que as otra maldade, inté desconfio que seja
porque aquelas tem frieza, e essa é quente, de explosão
mas que mata mata, tanto ou inté mais, e também sem saber
Já vi muié morrer por usar batom ou cortar cabelo
por passear em casa dos pais ou por qualquer pouca traição
Já vi irmão matar irmão por porco inteiro ou pedaço de frango
e vizinho matar vizinho por conta de muita cachaça e pouca discussão
Mas um detalhe dessa maldade, meu sinhô, tenho de alembrá
O sinhô não esqueça que é gente simples, que não sabe conversá
que cresce capinando o mato, ouvindo e imitando som de bicho
e sem palavra a solução pra tudo passa a ser brigá ou matá
No mais, tem uma outra maldade, meu sinhô, que é da lei do lugar
Em terra bruta, de difícil vivência, pode mais quem tem mais força
Então os ômi tão em melhor posição, com mando e desmando
E os mais fraco obedeceno se tem juízo, véio, criança e muié
Mas chega de falar de maldade, né, meu sinhô
se não sinhô resolve ficá só de passagem
levano só o seco e os osso dessas paragem
sem salvar com a beleza pura desse lugar a sua viagem
Como eu lhe disse, meu sinhô, não se engane
aqui gente boa é maioria, que trabalha em honesto
módi sustentar a famia sem causar prejuízo a ninguém
levano no lombo bem em diante o fardo pesado que tem
É toda essa gente que o sinhô vê arano essas terra
moiano com a pouca água que sobrou
fazeno brotá o que ainda não há
e o que o desistir ainda não levou
Gente que banha todo dia essas terra de muito suor
Seguino vida dura, de levantar e se deitar com o sol
Forjano com todo sacrifício cada coisa de precisão
Do beber e do comer ao sonhar, imagine o senhor então
Desde a água que se panha a longa distância para tudo o que há
O plantio de tudo quanto se precisa pra uma mesa botá
Arroz, feijão, milho, mandioca, cana, horta e pomar
Inté galinha e gado, pra ovo, leite e carne e otras iguaria prepará
Inté pra vestir algodão, meu sinhô, deve de se trabalhar
Não esqueça que pra se fazer farinha, há muito que pilar
As louça toda de barro queimado, os móvel de madeira cortada
Tudo o sinhô viu, inté as boneca das menina, tirada de paia de milho
Tudo isso à custa de muito trabalho, meu sinhô
Tanto que ômi fica na terra e muié na casa dia inteiro, dia entra e dia sai
Só hoje é que criança é liberada do trabalho módi estudá
Ainda assim trabalho maior não há pra elas que levar adiante esse lugar
E completa não ficaria a bondade, meu sinhô
se eu não lhe falasse, pra além do trabalho e da honestidade
da caridade dos ômi e das muié desse povo
que pouco tem pra si e pros seus, mas que muito dá pros que passar
O sinhô mesmo deve conferir, nas casinha deste lugar
há sempre café com pão ou biscoito pras visita
almoço ou janta para o que chega faminto
cama pro doente ou pro que precisa de pousá
Casa aqui é abrigo, é lar
Cozinha é aconhego, alimento
Prosa é carinho, é mornura
E cordialidade é só um pouco do muito que se dá
Essas são as posses maiores dessa gente boa
que muito pouco tem e que tudo doa
operano o milagre de multiplicar com amor
o bem pouco em muito bem
Quando chega a festa de Nossa Senhora do Rosário, meu sinhô
é hora dessa gente agradecer a Deus e à Senhora tudo o que tem
Levantar as mão, entoar hino e verso de louvor, numa beleza de coro
que ecoa longe, por todo esse vale de reza, que se ouve lá do céu
E por falar em céu, meu sinhô, por aqui há uns anjo
que dele se perdeu e não se acha em outro lugar
com uma bondade tão boa, tão pura
que neles só se vê a inocência, a luz e a cura
Esses anjo tão bem solto por aí
no meio dessas roça, dessa gente toda
mostrando o que é paz, caridade e perdão
servindo pra nóis de ponte com o Pai, com Eva e Adão
Soltos por aí tão também uns lôco, meu sinhô
de nascença, de crescença, de acidente ou de velhice
Uns meio são, meio lôco, outros, muito estranho, mais são que lôco
parecendo mais certo que os que se acham certo
Há também muitos mestre e artista por aí, meu sinhô
que sabem mostrar melhor que eu as belezas deste lugar
Com benzeção, trazem a paz, com palavra, sabiduria e conforto
com viola, a emoção, e do barro, tiram o retrato desse povo
E no meio de tudo isso, meu sinhô, tem o mais dessa gente
gente, pelo que eu sei, como eu e como o sinhô
que faz do preto e do branco um prato bem temperado
viveno sem mais graças ou desgraças, só que aqui viveno de trabalhá
Mas o trabalho não rendeno por aqui as riquezas do progresso, meu sinhô
só mesmo os frutos do próprio trabalhá
Bem material, muito não há, mas uns poucos, que se reparte bem ou mal
O que sobra de fato é a vida, que cada um mesmo é que tem que levá
Aqui, meu sinhô, não se engane
há um pouco de tudo que há por aí, só que diferente,
em pedra bruta, ou feito à mão e ornado em barro,
numa simplicidade de beleza que é só daqui
Nesse vale do Jequitinhonha, meu sinhô, riqueza não parece que há
Mas há sim, meu sinhô, e muita. Mas ela é como visão de beleza
De passagem, pressa ou afobação, querendo muito, a gente não vê não
É todo dia, escondida e aos pouquinho, que ela vem se mostrá