sábado, 21 de agosto de 2010

POLITICAMENTE INCORRETA

Eu quero tomar banho de chuveiro elétrico,
sem limites, ter a chuva quente no meu corpo triste,
consumir a energia das hidrelétricas,
esgotar a água do rio e dos mares,
matar de sede os animais e as plantas,
e depois de esvaída a última gota,
ter o sono tranqüilo e seco
do exaurimento. [Marina Procópio]

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

ENSINAR


 
Haroldo e Teobaldo tornaram-se amigos na maturidade. Ao bem da verdade, nem tão amigos assim... Mais por conta da amizade entre suas esposas, talvez...
Enfim, gostavam um do outro.


Mas existia algo naquele tempo. Ou, para não incorrer na ilusória percepção de memórias que teimam em idealizar o ido, onde não é mais possível saber do real, havia algo naquelas pessoas.


Que foram, por assim dizer, convivendo. Falando dos filhos e dos netos. Dividindo desassossegos e viajando juntos. Sentindo saudades comuns. Contando piadas. Planejando futuros.


Até que um deles adoeceu. No início, um desequilíbrio. Ao final, não podia andar. Sequer falava.


Aí, o outro o visitou. Todos os dias. Sem exceções. Tocava a campainha na mesma hora, voltando do trabalho, ou não. Sentava-se ao seu lado. Às vezes, contava uma novidade. Na maioria, nada dizia.
Ficava.
E se ia.


Chegou, então, o dia em que o amigo partiu. Definitivamente.
E nesse momento, sua neta cismou...
Tantas visitas.
E o humano coração do amigo, do seu amado avô. [Juliana]

terça-feira, 10 de agosto de 2010

ÓRFÃOS DE LÍNGUA


Devido à boa formação que recebi em colégios particulares de uma das capitais do país, acreditava eu que não pertencia à massa dos brasileiros que "fala errado" ou "escreve mal". Embora não me gabasse desse privilégio, por compaixão daqueles que não tiveram as mesmas oportunidades que eu, confesso que essa crença me confortava e muito. Afinal, inúmeros estudos científicos vêm há muito demonstrando que aqueles que manejam bem a linguagem têm muito mais chances de sucesso na vida do que os "iletrados".

Tudo ia relativamente bem, até que, nos finais de 2005, tendo rumado para Coimbra - Portugal, onde morei por dois anos, para realizar o meu curso de mestrado, tive uma interessante experiência linguística: escutei minha língua sendo falada e a vi sendo escrita por uma nação completamente diferente. No início, o som consonantal e sibilado me confundia e incomodava os ouvidos. Depois, a ordem das palavras, a colocação pronominal e a conjugação dos verbos é que me saltavam aos olhos, intimando para uma releitura. Em poucos dias, no entanto, já havia me acostumado a esse novo português. Era o que eu pensava.

Aprendidas as formalidades necessárias para o trato com as pessoas em geral e com os professores e funcionários da universidade, já me sentia segura para me comunicar. Tal não foi a minha surpresa, quando, já nos primeiros debates acadêmicos, percebi que sempre me faltava ao discurso palavra mais apropriada ou maior correção gramatical. Após minhas inserções, passei a me sentir, como nunca antes, um pouco envergonhada, por não ter sabido me expressar naquele português tão pomposo e correto de meus professores e colegas lusitanos. Comparando-me a eles, percebi que me faltavam, para não desfilar uma lista muito grande, extensão de vocabulário, familiaridade com as normas e os indispensáveis traquejo e naturalidade com a língua.

Para completar, comecei a ouvir ao meu redor, com uma chata insistência, que a minha língua era o "brasileiro" e, por exclusão, não o "português" que havia me acompanhado desde que nasci. "Quanta audácia!", pensava eu. "Me colonizaram e exploraram o país, me impuseram à força sua língua e, depois, quando a ouvem de meus lábios brasileiros, lhe rejeitam a paternidade, ou melhor, a maternidade". Até hoje, quando me lembro desses episódios, não sei dizer quem envidava mais esforços: se eram os portugueses, renegando aquilo que ouviam da boca dos miscigenados, ou se era eu, reinvindicando como órfã desesperada a maternidade da minha língua-mãe.

Ao fim do mestrado, retornei de vez ao Brasil e passei à fase das depurações. No que respeita à língua, após ter me reacostumado com o nosso "português" e ter relido alguns dos livros de Machado de Assis, percebi com uma clareza meridiana que, de mãe, essa nossa língua nada tem. Se, após o banimento do "tupi-guarani" pela "língua oficial" instituída por Marquês de Pombal, foi possível aos senhores do século XIX (ocupantes de cargos públicos e elite econômico-cultural do país) se comunicarem num "português" exímio, de luxo, à la Metrópole, isso não se mostrou possível para os nativos, os miscigenados ou a grande massa brasileira, que, sem saber ler e escrever, se formou através da língua popular, misturada nas palavras, nos jeitos de falar, de pensar, nas crenças e nos costumes.

Hoje fica mais fácil para mim compreender porque a língua que eu ouvia em casa, da boca de meus avós, era tão diferente da língua que me ensinavam na escola. Hoje fica mais fácil para mim compreender porque a narrativa oral de histórias, contadas ao lado do fogão, é mais prazenteira que o português rijo dos livros empurrados guelas abaixo pelas escolas. Hoje fica mais fácil para mim compreender porque era tão difícil me imiscuir, aos 14 anos, mesmo que bem alfabetizada, no "português examplar" dos textos de Machado de Assis.

A consciência da orfandade, que adquiri depurando Portugal, me cochichou que eu talvez tenha me equivocado àquela época, ao reivindicar com tanta veemência uma maternidade para a minha língua. Cochichou de novo, propondo que eu extraia da denominação "brasileiro", dada pelos portugueses à nossa língua, algo de melhor. Cochichou ainda essa minha consciência que talvez seja melhor que nós, brasileiros, assumamos a nossa orfandade de língua, catemos os cacos dos genes que ainda nos restam e, com as velhas e as novas palavras, construamos juntos, à la brasileira, no falar e na escrita, a nossa verdadeira língua-materna, ou melhor, o nosso "brasileiro".

[Poly Jeha]