Quem acompanha o blog já deve ter notado que cada uma de nós apresenta uma nova postagem por semana, ou pelo menos que a gente tenta - nem sempre com sucesso na empreitada. Mas, esclarecendo, nossa pretensão é essa: postar um texto por semana e, com isso, dar ao blog um ritmo e, ao mesmo tempo, fôlego para que cada uma de nós, blogueiras, ganhe três semanas entre uma postagem e outra para escrever sobre um novo tema.
Também já devem ter notado que eu, na minha semana, sempre atraso a postagem e acabo transformando a semana em semanas, para desgosto de minhas companheiras e espero, também dos leitores, que ficam lá, torcendo para a fila andar - como se diz hoje em dia - e eu ali, deixando as teias de aranha se acumulando nos cantos, aflita, mas sem encontrar tempo pra procurar o danado do espanador.
Ao mesmo tempo – e o pior - represo o movimento das minhas amigas que, provavelmente com todos os seus textos prontos há um mês, aguardam, impacientes, que eu abra a comportas.
Estou dizendo isso, na verdade, para justificar o meu grande atraso deste mês que, pensando bem, ainda não justifiquei. Então, vá lá: meu entrave se deve, entre outras coisas, ao fato de que eu estou sempre presa numa rede de vastas emoções, mas pensamentos imperfeitos, como diria Rubem Fonseca, de quem eu roubei esse pensamento perfeito. Por isso, os textos não saem na velocidade que eu gostaria.
Devo acrescentar, para ser honesta, que nas entrelinhas da justificativa vai também uma espécie de pedido de desculpas ou, ainda melhor, um desejo de condescendência, bem como a certeza de que para minhas amigas blogueiras todo esse blá blá blá só significa uma coisa: ela continua sendo a mesma enrolada de sempre.
Mas por falar em enrolar, vamos deixar de rolo e iniciar essa crônica, que trata, no final das contas, de rolar as pedras.
É que outro dia, chegando em casa depois de mais um estafante dia de trabalho, com dores por todo o corpo e uma falta de saco danada para repetir tudo no dia seguinte, deitei-me no sofá da sala, liguei a TV e literalmente apaguei, minutos depois. Meu cérebro, que é mestre em decodificações, apresentou-me o seguinte sonho: eu era obrigada a aparar, todas as noites, a barba de um homem imobilizado, mas ela voltava a crescer no dia seguinte. Ainda assim, eu cumpria minha missão religiosamente, superando todos os obstáculos, sem jamais desistir. Por minha diligência, nos minutos finais do sonho fui carregada nos ombros como a grande vencedora destes, digamos, jogos olímpicos do absurdo.
A interpretação destas imagens, com todos os seus meandros, deixo a cargo de um especialista (mas, por favor, não se pronuncie aqui, pode ser muito constrangedor!). O fato é que, tão-logo desperta, veio-me à memória o mito de Sísifo, lendário rei de Corinto, na antiga Grécia.
Sísifo, em grossas linhas, ousou desafiar os deuses por três vezes. A primeira porque revelou a Ásopo, o deus-rio, o paradeiro de sua filha, raptada por Zeus. A segunda, quando prendeu a deusa-morte, Tânatos, em sua cidadela e, com isso, interrompeu o ciclo da vida e a terceira, ao retornar ao mundo dos vivos sob o pretexto de enterrar seu corpo insepulto, quando, ao invés de proceder aos ritos fúnebres, preferiu permanecer vivinho e fugir com sua esposa para longe da influência dos deuses do Olimpo. Só foi levado definitivamente ao Hades, o reino dos mortos, em sua velhice.
No Hades, por sua desobediência reiterada aos deuses, Sísifo foi condenado a cumprir a seguinte pena: deveria rolar, para toda a eternidade e sem cessar, uma enorme pedra de mármore até o alto de uma montanha íngreme; chegando ao cume, a pedra rolava novamente para o sopé da montanha e era ele obrigado, de imediato, a subi-la outra vez ao cume, num trabalho inútil e sem descanso.
O mito - como todo mito - tem caráter simbólico: assim como Sísifo, somos seres condenados. Não sei o que fizemos contra os deuses, se a culpa foi de Eva e sua maçã, se pagamos ainda pela ousadia do rei de Corinto ou se pela ousadia do nosso cérebro, que nos transformou em seres conscientes (mas que não se desenvolveu o bastante para nos tornar oniscientes), mas o fato é que a vida, com tudo em seu lugar, como diria Bandeira, é isso: rolar a pedra ladeira acima só pra ver ela rolar ladeira abaixo.
Varremos ruas intermináveis, preparamos infinitamente o alimento, esfregamos quilômetros da mesma roupa suja; o padeiro é obrigado a todo dia enrolar a massa para fazer o pão, planta-se sempre a mesma batata para colher o mesmo nabo, o lixo de hoje é igual ao de ontem, a fome saciada agora volta a arder no dia seguinte. Trabalhamos diuturnamente um trabalho sempre igual, compramos a casa (para quem tem sorte), temos os filhos (para quem tem coragem), o sol nasce e se põe, e lá estamos nós, rolando a pedra ladeira acima de novo, com pequenas variações sobre o mesmo tema.
Para Camus, que analisou o Mito de Sísifo, só superamos a miséria de nossa situação quando nos assenhoreamos da absurdidade da condição humana. Ou, por outro modo, quando aceitamos, sem possibilidade de fugas, a falta de sentido de nossas vidas e, por isso mesmo, nos tornamos senhores dos nossos dias, sem condicioná-los a qualquer destinação superior.
Não sei se Camus estava certo. Na verdade, eu acho até que assenhorear-se do absurdo de nossa condição nos salva quando estamos num beco sem saída, mas pra mim, já que não podemos voltar ao nosso estado de inconsciência, o melhor mesmo é a fuga para a irrealidade cotidiana, no bom sentido.
Por exemplo, já pensou se na próxima encarnação – sim, porque não viajar na próxima encarnação, se tudo é mesmo absurdo – o homem já tiver se transformado, por meio de suas incríveis invenções, em um ser fotossintético? Seria o fim do trabalho sem descanso e a pedra, com certeza, ficaria muito mais leve, alguma coisa assim com uma pedrinha de isopor, que a gente empurrava para cima da montanha com um sopro e que, se deus quisesse, demorava a voltar para o sopé, agarrada em alguma moitinha recém-nascida ou numa saliência insuspeitada pelos deuses.
É lógico que aí ia ter o problema da extinção do sol, mas até lá muita água teria rolado por debaixo da ponte e a gente tem que se concentrar em um problema de cada vez.
Eu, como garantia, operarei essa transformação em mim mesma nesta encarnação, assim que me aposentar, se é que vou estar viva até lá: minha intenção é ficar a beira-mar, só a ver navios, me alimentando de luz ... e da minha aposentadoria, se o governo não me usurpar o benefício.
Enquanto esse tempo não chega, vou me exercitando nos fins-de-semana e nos feriados prolongados, em longas tardes de rien a faire, olhando o céu azul e lendo belíssimos livros, frutos da mais pura nostalgia humana.
Aliás, sem a melancolia e a nostalgia próprias da nossa condição, Dostoievski e Kafka, que Camus tanto prezava, jamais nos teriam presenteado com suas obras-primas e nunca haveríamos compreendido a poesia, que só faz sentido diante da falta de sentido.
O que eu quero dizer com isso tudo é que, pra mim, a única e grande adversidade da condição humana reside na obrigatoriedade do trabalho. Sem isso, acho que daríamos conta, com muito mais bom humor, da nossa precariedade.
A mim, por exemplo, só me incomodam tais questões filosóficas quando estou trabalhando muito – e também se o dia ficar nublado ou se meu estômago estiver doendo.
Portanto, pra ser sincera, acho que Camus errou, ao partir do pressuposto de que o homem não se dá conta de sua condição absurda. Acho que ele se dá conta, e muito bem: por isso, inventou a cerveja, as férias, a anestesia e o petit gateau.
E também o pedido de desculpas, quando às vezes opta por ver um filmezinho ao invés de dedicar suas preciosas horas de ócio ao enredo de suas estórias. [Marina Procópio]
Então, rolemos as (nossas)pedras! Com cerveja, cinema, petit gateau, risos, choros, pedidos de desculpas, amor, piadas, análise...
ResponderExcluir... e tudo mais que a nossa condição humana nos permitir acrescentar nessa listinha!
ResponderExcluir“Nossos problemas nos desafiam continuamente, provocando assim a nossa evolução. Não importa tanto alcançar o objetivo, mas sim estar a caminho, e a coragem de poder sempre recomeçar, outra vez, do princípio. O tema não seria o homem que continua vivendo na desesperança, aceitando a finitude absoluta e transformando a vida tanto quanto lhe seja possível, desprezando assim, em última análise, a morte; ao contrário, ma seria então o homem que tem esperança, que se esforça e está sempre se desiludindo, que, apesar dessas reiteradas desilusões, não foge, mas recomeça sempre de novo, de modo a arrancar sempre da morte um pouco de vida. Na esperança reside uma forma de segurança. Ela sempre transcende o aqui-e-o-agora, a vontade consciente. Em geral, ela nos dá força para empreender algo, confiando que alguma coisa irá se modificar ou que a perseverança tenha pelo menos um sentido.” Profa. Solange Firmino
ResponderExcluirNão nego que procuro sempre uma nova postagem e que a sua falta causou uma certa ansiedade. Mas é perfeitamente compreensível poís quem dera pudéssemos cumprir todos os nossos empenhos sem carregar tantas e pesadas pedras. Suas desculpas estão aceitas, compreendidas e acatadas. Continue sempre a escrever com ou sem atrasos.
Beijos, “sinie die”, como no começo dos tempos.
Marília Utsch