A morte do cinegrafista que acompanhava a entrada do BOPE em uma favela carioca não deve ter passado ilesa a várias consciências brasileiras. Tristeza. E convite à reflexão.
Vivemos em um país onde o homicídio indiscriminado é cotidianamente praticado pelo Estado. Lembro-me de uma cena, vista há algum tempo atrás pela TV, em que traficantes fugiam a pé e a polícia, de helicóptero, atirava em todos.
Chocou-me: a cena. A forma com que se narrava o fato era de empolgação (não é à toa que não assisto mais à televisão): imprensa que não pensa e não ajuda a pensar sequer cumpre sua função técnica. Que dirá sua responsabilidade ética e social. Afinal, todos – indivíduo ou organização – somos responsáveis pela realidade que nos permeia: necessidade mera de sobrevivência da espécie.
Chocou-me: a reação de vários de nós, brasileiros. Infinitamente mais que a cena por si. Pessoas sentiram-se felizes e protegidas pela ação da heróica polícia. Não se importaram com a forma e o conteúdo da narrativa a que assistiram. Sequer pensaram que aquilo era um crime, acontecendo ao vivo, a alguns quilômetros de suas casas, respaldado pela imprensa, pela polícia e pelo Estado.
Remanescente indiferença... Acordada (por quanto tempo?) pela morte de um repórter, que não é bandido de morro. A permissividade e a natureza desses juízos são de assustar.
Pensemos: um Estado de Direito que consagra, para assim poder se definir, o justo julgamento – que implica indispensável defesa do acusado e não admite a pena de morte civil – não pode apresentar como solução para os crimes cometidos em seu território o massacre humano público e indiscriminado, por pior que seja o suposto bandido: até ser investigado, acusado e condenado, ele não passa de um suspeito. E mesmo condenado, não pode ser morto por seus crimes.
Não confio em indivíduos que falam, mas não fazem: o que nos define são nossas ações, não nosso discurso esvaziado e inconsistente, justamente pela falta ou execução de ações a ele contrárias.
Transportemos a constatação para esferas coletivas: enquanto sociedade organizada que somos estamos ignorando a forma legal que escolhemos para viver e consagrando, através de nossas ações ou omissões, outra bastante diferente.
De duas possibilidades uma: ou discutimos a permissão de extermínio pelo Estado e a tornamos legal ou acontecimentos como os mencionados aqui precisam ser combatidos pelo Estado e (sobretudo) por toda a Sociedade que o sustenta.
A morte do repórter foi triste. E um acidente que provavelmente incitará discursos (e ações, quem sabe) no sentido de mais armar o Estado (e os criminosos, por óbvia conseqüência), permitindo, assim, a morte de mais cidadãos brasileiros. Quer gostemos ou não, nossos bandidos são frutos da sociedade que construímos tanto quanto suas vítimas. Por ambos – partes do mesmo todo – precisamos nos responsabilizar.
E não será estranho possuirmos uma polícia militar, com formação de exército, em nossas ruas? Façamos uma comparação – apenas para facilitar a visualização de funções – entre exército e polícia federal, pensando em suas formações técnicas: o exército é treinado para matar o inimigo. A polícia, para investigar e servir a seus cidadãos, protegendo-os e entregando supostos criminosos ao sistema judiciário.
Agora, subamos o nível econômico: imaginemos a polícia militar invadindo, trocando tiros e matando traficantes e moradores de um condomínio de alto luxo. Mais: a polícia militar invadindo o Congresso Nacional atirando em criminosos de branco colarinho.
A imaginação torna mais visível nossa vulnerabilidade: existe processo legal neste país?
Se história não servir para aprender, melhor soterrar de vez o passado e voltar a fazer fogo com palitinho e pedra.
Acho que estamos doentes da cabeça. E cegos, de olho e de alma. [Juliana]